O Jorge mais amado

As cartas e postais que Jorge Amado trocava com Zélia Gattai, a bem-amada, foram recolhidas e editadas há não muito pelo filho do casal
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Que Jorge foi amado, disso ninguém duvida. Que de seu lado amou, num jeito intenso, assaz frequente, é também coisa que jamais se impugna. A comprová-lo, as cartas e postais que amiúde trocava com Zélia Gattai, a bem-amada, recolhidas e editadas há não muito pelo filho do casal, João Jorge Amado, a quem a irmã Paloma ofereceu cinco pastas de correspondência trocada pelos pais entre 1949 e 1967. Zélia guardava tudo, fiel ao sábio princípio herdado de mãe Angelina: "Quem tem, procura e acha; quem não tem, procura e não acha." Se Zélia guardava, Jorge escrevia, escrevia muito, sendo um epistolar compulsivo.

As primeiras cartas datam do início do seu exílio, rumo a França no paquete Formose, com escala em Dakar. Logo em alto-mar, e sobretudo quando chega a Paris, Jorge procura à outrance aplacar os terríveis ciúmes da companheira, desconfiada - com razão? - de um brasileiro à solta na capital do pecado. Memórias pretéritas que o escritor recolheria em Navegação de Cabotagem davam, de facto, motivo para os maiores receios, como aquela lembrança do Primeiro Congresso de Escritores Brasileiros, reunido solenemente no Teatro Municipal de São Paulo em 1945, o ano em que conheceu Zélia: "Festinhas, danças improvisadas, bate-coxas animados, comilanças, beberanças e, acima de tudo, a boa fodilhança: como se fodeu nesse Congresso, inimaginável! Vinicius de Moraes, galã de cinema, ia de mão em mão, melhor dito de xoxota em xoxota. Tampouco me posso queixar."

A bordo do Formose, onde passou boas horas ("como e durmo como um animal"), indispõe-se com Edna, polaca casada com um português, prostituta em Paris, que comete o supremo deslize de maldizer Tônia Carrero, grande amiga do escritor, e, cúmulo dos pecados, se confessa íntima e fraterna do odiado Carlos Lacerda. Nas cartas seguintes, Jorge desdobra-se em declarações de amor inflamadas, rasgadíssimas, menospreza as mulheres com quem se avista, chega a mostrar-se incomodado com os amargos de Zélia, jura que sexo só com ela, a legítima adorada: "Esta não me interessa em absoluto. Nem outra senhora qualquer. Interessa-me tu, meu bicharoco lindo e louco. Tu que largaste tudo, família e casa, honra e amizades, por mim, que me amas e que és loucamente amada por esse teu negro que muitas vezes não sabe te mostrar toda a ternura que sente porque a vida o tornou calado, rude e meio soturno. É curioso, Zé: já há algum tempo eu cheguei à conclusão de que minha vida sexual de tantas mulheres se devia a que nenhuma delas me satisfazia. Assim, quando vivi com Matilde ou quando vivi solteiro em São Paulo. E digo isto porque não me custa nenhum esforço te ser fiel. Eu dormia com muitas mulheres porque sentia vontade de dormir com elas. Hoje não sinto essa vontade, basta-me dormir contigo. Não considero sequer minha fidelidade como virtude porque ela não me custa esforço nenhum", escreve de Paris, em Março de 1948, na mesma carta onde dizia ter ido a três cabarés, nenhum de interesse: "Show de mulheres duas (regularmente velhas), num inteiramente, noutro como em qualquer teatro de revistas daí. O terceiro era um cabaré de frescos." Os ciúmes de Zélia, todavia, não parecem ter serenado, já que, pouco depois, Jorge sente o dever de se explicar sobre a mulher que o secretariava na Cidade-Luz: "Tenho visto museus, andado em Paris, o pessoal pôs uma secretária (não tenha ciúmes que é pessoa séria e que de tanto eu falar,já te estima) à minha disposição." Mais tarde, Jorge retomaria o assunto da auxiliar administrativa, pelos vistos melindroso: "Quanto à secretária, é uma pessoa que fala português e como meu francês é infame foi posta à minha disposição para quanto eu necessitasse. É boa pessoa e muito competente, mas só isso. É outra Fanny, filha minha, não tenhas ciúmes tolos. À proporção que melhora meu francês, menos eu a utilizo."

Tão ou mais que os ciúmes, e como é frequente na correspondência de escritores e poetas, surge a questão do dinheiro; ou da falta dele, melhor dizendo. Hospedado num hotel modestíssimo no Quartier Latin, acossado pelas temperaturas agrestes do Inverno parisiense ("que frio mais infernal, seis graus abaixo de zero"), tomando duches ocasionais numa casa de banhos públicos ("é mais barato do que no hotel e melhor"), o escritor pede à companheira que verifique o pagamento de direitos autorais em atraso ("Os dois mil do Campiglia. Exija o recebimento. Aperte o Rui. Não admita que não paguem"). Fala das editoras estrangeiras interessadas na sua prosa, faz listas intermináveis dos produtos que Zélia devia trazer para a Europa: "Quanto mais tragas, melhor, pois a vida é dura e João necessitará de um certo conforto. É importantíssimo que tragas o máximo de alimentos." Seguia-se o rol dos mantimentos, feito em parceria com Carlos Scliar: leite em pó, chocolate, manteiga, arroz, café, carne enlatada, feijão, farinha de trigo, aveia, farinha de mandioca, goiabada, bananada, marmelada, sardinhas, palmito, cigarros. Em Estocolmo, "cidade bonita mas chata", poupa na alimentação, caríssima, para comprar uns chinelos para Zélia.

E depois, a saudade imensa. Logo na primeira carta, ainda em águas brasileiras: "Deu-me uma saudade brutal. É terrível e inexplicável a atracção que o Brasil exerce. A gente sofre o diabo aí: incompreensões, perseguições, chatices de todo o jeito. Almeja sair. Mas, mal sai, a saudade aperta." Saudoso e desterrado, Jorge desembarca em França para ser recebido pela fina-flor da intelectualidade parisiense do pós-guerra. Passa agradáveis tardes em casa de Vieira e Arpad (que lhe faz o retrato), avista em recepções François Mauriac, Jean-Paul Sartre, André Maurois, mas é entre os comunistas como ele, com Aragon à cabeça, que mergulha a fundo nas lutas culturais em que a Guerra Fria foi fértil. Thorez recebe-o, corre a Europa inteira em nome do Conselho Mundial da Paz, é acolhido calorosa e fraternalmente nas embaixadas dos países de Leste, escreve de Praga, Viena, Estocolmo, actua como agente e ponto de contacto dos intelectuais comunistas brasileiros ("telefona a Niemeyer e pergunta-lhe se ele aceitaria um convite da Tchecoslováquia para visitar aquele país", pede a Zélia). O trabalho da escrita ressente-se desta intensa actividade política, tendo Jorge Amado dolorosa consciência disso. Refugia-se então em Villefranche-sur-Mer, no Sul da França, para avançar um romance, mas logo os deveres da militância o afastam do desígnio das letras. Desses tempos ficou um livro inconcebível, que seria mais tarde rasurado das bibliografias do escritor: O Mundo da Paz, hino servil a Estaline, dele foram feitas cinco tiragens pela Vitória, a editora do Partidão.

As últimas missivas são já da Bahia e de Pernambuco, escritas por Jorge para o Rio de Janeiro. Ainda que mais espaçados, permanecem os ciúmes e as tentativas de os amansar. Recife, 1959: "Creio, querida, minha bem-amada, que, em lugar de ficares zangada com fantasmas, deves é vir para aqui e ficar uns dias comigo." Quanto ao mais, questões domésticas, quiçá prosaicas, como o despedimento sumário de uma empregada: "Creio que fizeste bem em mandar a Arlinda embora, ela não prestava mesmo. Deves é arranjar logo outra senão vais morrer de cansaço." Ou a protecção implacável, típica de filho de coronel do cacau, dos limites da propriedade que o casal comprara para construir a Casa do Rio Vermelho. A aquisição fora financiada, detalhe curioso, pela venda dos direitos de adaptação ao cinema de Gabriela, Cravo e Canela ao potentado ianque Metro-Goldwin-Mayer, ou, nas palavras de Jorge em Navegação de Cabotagem, "com os dólares imperialistas do cinema de Hollywood pude realizar o sonho de ter uma casa na Bahia".

Dos tempos de exílio ficara a saudade, toda a saudade do mundo. Agora já não saudade dos trópicos, mas da Europa adoptiva. Mais folgado de finanças, o casal compraria pouco depois uma mansarda no Marais, onde passava metade do ano. Foi lá que os vi um dia, nas escadas do Sacré-Cœur, Zélia, a fera amansarda, e o seu Jorge mais amado.

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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