O jardim sem limites de Paula Rego inspirado em Crivelli
Existem muitíssimas imagens de Paula Rego - não é de surpreender, foi uma figura pública que viveu a maioria da vida na época da fotografia digital - mas só um punhado fica na memória. Entre estas, uma foto, tirada em 1990, altura em que já fizera o nome no mundo da arte pelo poderoso estilo figurativo e pela evocação de histórias tanto imensas como íntimas, mostra-a no atelier. Está em frente de uma grande tela que, ainda que em curso, já retrata várias mulheres e um homem deitado que acaba de perder a cabeça.
O olhar de Rego encontra o nosso, sem medo, e segura com confiança na mão direita dois grandes pincéis. Se, como afirmou o seu primo ibérico, Pablo Picasso, a arte é "una herramienta de lucha" - e, para Rego, certamente foi no que respeita ao aborto e à mutilação genital feminina - são estas as suas armas. Está preparada. Aquele homem é a última vítima. Que continue a batalha.
A tela atrás da portuguesa iria fazer parte de Crivelli"s Garden (O Jardim de Crivelli), obra realizada em 1991 no final do tempo em que serviu de primeira artista associada da Galeria Nacional em Londres, cidade a que veio a chamar casa. Agora, até a 29 de outubro, a sede da coleção artística do Reino Unido expõe de novo esta pintura de nove metros, que foi originalmente para o restaurante de uma então nova ala.
A primeira exposição de Rego numa galeria pública britânica desde o seu falecimento em junho do ano passado tem dois objetivos, e alcança-os muito bem. Primeiro, sublinhar as ligações entre o trabalho de Rego e Madonna della Rondine, retábulo do italiano Carlo Crivelli que data do século XV e pertence à coleção do museu, que se encontram juntos pela primeira vez. E segundo - e não menos importante - no dizer de Priyesh Mistry, curador da mostra, "celebrar o legado e a influência" da mulher que deu, de maneiras tão impressionantes, uma face ao medo.
Por mais bem concebida que seja, a obra, na verdade, poderia nunca ter sido. Rego já conheceu a instituição (no prefácio do fino catálogo que acompanha a exposição, o cineasta Nick Willing recorda as visitas da mãe quando estudava na Slade School), mas ao ser convidada a aceitar o papel de 18 meses, a resposta dela foi brusca. "The National Gallery is a masculine collection and as a woman I can find nothing there that would be of interest to me" ["A Galeria Nacional é uma coleção masculina e, enquanto mulher, aí não encontro nada que me pudesse interessar"], escreveu, e com certa razão, uma vez que ainda hoje artistas mulheres representam 1% do seu inventário.
Uma semana mais tarde, telefonou, tendo mudado de opinião. A sua resposta quando lhe perguntaram porquê? "The National Gallery is a masculine collection and as a woman I think I absolutely will be able to find things there for me." ["A Galeria Nacional é uma coleção masculina e, enquanto mulher, acho que conseguirei absolutamente encontrar coisas aí para mim."] Assim, no segundo dia de 1990, entrou na instituição. Como lembrou numa entrevista concedida ao crítico de arte britânico John McEwen, Rego chegou com apenas um requisito: o de produzir trabalhos relacionados diretamente com as pinturas na coleção.
Num ensaio de Colin Wiggins, assistente da GN que lhe deu a conhecer a obra de Crivelli, no catálogo para a primeira exposição relacionada com a estadia, Rego descreveu a forma como se tinha inicialmente comprometido com a coleção. "I would creep upstairs and snatch at things, and bring them down with me to the basement, where I could munch away at them. And what I brought down here from upstairs varied a lot, but I always brought something into my den." ["Subia as escadas de fininho, roubava as coisas e levava-as comigo para a cave, onde as mascava. E o que trazia lá de cima para baixo variava muito, mas sempre trouxe algo para a minha toca."] A linguagem da artista - "de fininho", "roubava", "mascava", "toca" - evidencia não só a frequência como também uma espécie de caça furtiva. Rego, a espiã, ou, melhor, a mulher-cão avant la lettre, no coração da elite pictorial.
À semelhança de muitos outros desenhos, pinturas e gravuras seus, o foco aqui é altamente feminino e, deste modo, feminista. Em vez de um arranjo de santos, como em Crivelli, estamos perante uma galeria de santas e transgressoras tecendo múltiplas histórias, em ambos sentidos do substantivo. Além de Margarida, Marta, Cecilia, Catarina (que aqui mata o imperador romano que autorizou a tortura dela), e Diana e Dafne da mitologia grega, Marias há três: a Virgem, encarnação da perfeição, a visitar Isabel, a do Egito e Maria Madalena, cuja viagem à veneração da prostituição aponta para pecados passados. Na tela esquerda, vemos Dalila abaixo do vulnerável Sansão, enquanto uma jovem Judite deposita a cabeça de Holofernes no avental da criada, num ato de cumplicidade fraterna. Entre elas, animais tanto reais como fantásticos e meninas a ler, a brincar, a desenhar. Uma neta de Rego descobre o reflexo numa fonte de água decorada por raparigas dançantes.
Eis, portanto, uma obra simultaneamente muito clássica - nos sentidos de ser inspirada por uma peça pré-moderna, pela Bíblia e pela mitologia, e de existir numa, e graças a uma, coleção nacional - e nova. Nova, sim, no sentido de jovem, mas sobretudo, para uma instituição resolutamente masculina, na maneira como traz para primeiro plano contos e corpos do "segundo sexo". Embora feita em Londres e inspirada por um italiano, é também uma obra portuguesa: basta olhar para os azulejos que formam a borda mural do jardim, todos brancos e azuis, cor da Madona e do mar que bate no fundo.
Para Rego, que passou a dialogar com outros "Antigos Mestres", inclusive Francisco Goya e William Hogarth, após a residência, a criação de Crivelli"s Garden constituiu um ato de fé. Como disse a McEwen: "I believe in these women. I know they exist. They exist as part of stories and stories are just as important as if they existed in reality; it makes no difference." ["Acredito nestas mulheres. Sei que existem. Existem como parte de histórias e as histórias são tão importantes como se existissem na realidade; não faz diferença."] Foi igualmente um projeto de paixão, a artista observando que "I"ve never enjoyed anything so much" ["Nunca gostei tanto de nada."]. Felizmente para nós, ela mudou de ideias nesse dia de 1989. Mais de três décadas depois, a fresca visão que oferece, suave mas firme, calma mas ameaçadora, vai indicando o excelente cultivo do seu jardim.