O Japão aqui tão perto

Título marcante da última edição do Festival de Cannes, Dias Perfeitos ilustra a capacidade de Wim Wenders de gerar genuínas emoções a partir de histórias inesperadas e personagens invulgares.<br/> É o representante japonês na corrida para o Óscar de Melhor Filme Internacional.
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Depois de O Sol do Futuro, de Nanni Moretti, e Fechar os Olhos, de Víctor Erice, aí está Dias Perfeitos, mais um dos grandes filmes da 76ª edição do Festival de Cannes, realizada no passado mês de maio - no palmarés oficial, valeu a Koji Yakusho o prémio de Melhor Ator. Entretanto, Dias Perfeitos protagoniza agora uma proeza "supranacional" que, não sendo inédita, não deixa de ser sintomática da globalização em que o cinema também passou a existir: dirigido por um cineasta alemão, Wim Wenders, é o representante oficial do Japão na corrida ao Óscar de Melhor Filme Internacional.

A relação com o Japão pontua toda a trajetória criativa de Wenders, através da sua produção como fotógrafo, mas também com dois documentários: Tokyo-Ga (1985), dedicado ao realizador Yasujiro Ozu, agora também presente no mercado português através do lançamento de dois títulos comercialmente inéditos (História de um Proprietário Rural e Crepúsculo em Tóquio, respetivamente de 1947 e 1957); e Notebook on Cities and Clothes (1989), sobre o designer de moda Yohji Yamamoto.

Ainda assim, o ponto de partida de Dias Perfeitos é, no mínimo, insólito. Tudo começou com um convite do produtor Koji Yanai para ir a Tóquio conhecer e filmar as... casas de banho públicas da cidade. Tinha sido criada uma nova rede de instalações sanitárias, particularmente inventiva em termos arquitetónicos, e Yanai propunha-lhe a realização de uma série de curtas-metragens. O certo é que Wenders sentiu que tinha matéria para uma longa e, com a ajuda do argumentista Takuma Takasaki, inventou a personagem de Hirayama (Koji Yakusho, precisamente), empregado de limpeza das casas de banho de Tóquio.

Como foi amplamente sublinhado em Cannes, as singularidades de Hirayama começam nos contrastes da sua vida "dupla". Durante o dia, ele é um trabalhador aplicado, garantindo a higiene dos espaços que tem a sua cargo; com frequência, o seu grau de exigência leva-o a repreender Takashi (Tokio Emoto), um ajudante preguiçoso e algo desleixado. À noite, na solidão da sua casa, vemo-lo a ler romances de William Faulkner ou Patricia Highsmith, e também a ouvir canções de uma riquíssima coleção de clássicos, incluindo Nina Simone, Otis Redding, Lou Reed, Patti Smith e Van Morrison - como é óbvio, o título do filme deriva do tema Perfect Day, de Lou Reed (do álbumTransformer, de 1972).

Tudo isto pode levar-nos a considerar que há uma dimensão poética em Dias Perfeitos que resulta da aparente inadequação que existirá entre a experiência laboral de Hirayama e o seu tesouro de músicas e livros "antigos". Talvez, em parte, mas vale a pena considerar uma alternativa ao esquematismo de tal perspetiva. De facto, tal como filmadas por Wenders (e limpas por Hirayama), as novas casas de banho de Tóquio, mesmo na sua muito básica funcionalidade, são sinais de uma ordem - envolvendo lugares e comportamentos - de que decorre todo um elaborado sistema de vida.

As canções não funcionam como "compensação" para as rotinas de Hirayama, antes como elementos de um modo de existir em que tudo parece confluir para uma harmonia individual fabricada no interior de uma solidão radical. Por alguma razão, o dia a dia de Hirayama só será abalado, não por causa dos disparates de Takashi, mas sim pelo aparecimento da sua sobrinha Niko (Arisa Nakano) - é ela que vem atualizar uma perturbação enraizada no passado, nessa medida justificando as sequências "oníricas", a preto e branco, concebidas pela mulher do realizador, Donata Wenders.

Dias Perfeitos resulta, assim, uma aventura japonesa de tocante intimidade, nessa medida levando-nos a redescobrir o realismo ambíguo que sempre marcou a obra de Wenders - também a partir de hoje, no Cinema Nimas, em Lisboa, serão apresentados alguns títulos significativos disso mesmo, incluindo o já citado Tokyo-Ga e Paris, Texas, Palma de Ouro de 1984 em Cannes.

Não é, entenda-se, um realismo da espontaneidade - só mesmo a ingenuidade, por vezes a demagogia, de alguns dispositivos televisivos confunde as ilusões da espontaneidade com a gestação de uma linguagem inquestionavelmente realista. É, isso sim, a construção, paciente e sofisticada, de uma dialética enraizada na consciência da ambivalência de qualquer olhar documental. Na conferência de imprensa de Cannes sobre Dias Perfeitos, Wenders resumiu o assunto através de uma expressão sugestiva: "A melhor maneira de dar conta de um lugar é uma ficção."

Aliás, também em Cannes, pudemos compreender que, para Wenders, tal visão pode envolver um radical desejo experimental. Extra Competição, foi revelado o seu novo, também admirável, documentário, intitulado Anselm, sobre o pintor e escultor Anselm Kiefer (agendado para 4 de janeiro nas salas portuguesas).

Num tempo em que uma pobre visão normativa da produção cinematográfica associa as três dimensões apenas às estafadas rotinas dos estúdios Marvel, Wenders filma as obras de Kiefer em 3D, reforçando o poder mágico de muitos dos seus filmes: quanto mais distantes estamos de uma personagem ou de um cenário, mais podemos com eles partilhar as mais enigmáticas emoções.

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