O IVA contra a gripe
Com mais convicção ou maior resignação, fomo-nos habituando ao jargão que nos impôs termos como "empreendedorismo" ou, menos mal, "iniciativa". Não há, que eu conheça, tecnocrata que lhes resista, independentemente do quadrante político em que enfileire. Bem vistas as coisas, são palavras que enchem a boca e que, ditas sem mais, ainda impressionam e acabam por soar como bandeiras de suporte para outra, a da "modernização". Para algo completamente diferente, também nos foi entrando pelo catálogo das ideias incontestáveis, pela mão de cientistas, espontâneos ou "partes" comercialmente interessadas, a caracterização de Portugal (fora os outros) de um país que contacta pouco com a Natureza, que não se apega ao ar livre, que assume rotinas sedentárias, sem espaço para a surpresa e para as alternativas. Tudo jóia.
Vale a pena pegar no que atrás ficou escrito e partir daí para uma abordagem à medida orçamental prevista que divide, separa, cinde a taxa de IVA aplicada aos espectáculos culturais em dois percentuais distintos (e com o segundo a implicar o dobro do outro) - se a coisa decorrer "em recintos fixos de espectáculo de natureza artística ou em circos ambulantes" - nas áreas de "canto, dança, música, teatro e circo" -, cobra-se 6%; caso o "evento" tenha lugar "ao ar livre" ou "não se realize nos recintos supracitados", toma lá 13%. Espaço houvesse e aqui se repetiria este bizarro enunciado, só para que o leitor ganhasse a certeza de não estar a ser enganado pela vista. Admito, pelo menos nesta fase, que haja um qualquer critério que separe os tipos de espectáculo, embora fique por explicar porque devem ser o cinema e as touradas a aparecer automaticamente colados à taxa mais alta. Mas já não se aceita, até por ausência de apresentação dos motivos de sentença, que um concerto - e refiro-me à música em particular, por se tratar mais da minha "zona de conforto" - veja este imposto diferenciado em função do local escolhido para a sua apresentação. Trocando em miúdos (e até para os mais miúdos, em concreto): o concerto de Ed Sheeran anunciado para o próximo ano no Estádio da Luz "vale" 13%; se se realizasse no Coliseu dos Recreios, no Centro Cultural de Belém ou no antigo Pavilhão Atlântico, a cobrança baixaria para os 6%. A mesma diferença será aplicada a um concerto de orquestra na Casa da Música ou nos jardins de Serralves. Conclui-se, assim, que o orçamento tem razões que a razão desconhece.
Duas ressalvas, a respeito desta mixórdia unilateral e carente de motivação séria e transparente: nada me move contra a salvaguarda e a utilização dos equipamentos fixos, tantas vezes recuperados pelas autarquias locais. De repente, recordo-me de três - a saber: o Teatro Sá de Miranda, em Viana do Castelo, a Casa das Artes de Famalicão e o Cine-Teatro Garrett, na minha terra de adopção, a Póvoa de Varzim - em que já tive o prazer de assistir a belíssimos espectáculos e que merecem, até, uma visita "guiada". Por outro lado, não me falha a consciência de que alguns promotores - não são todos iguais, longe disso - dos chamados "festivais de Verão" poderiam esquecer-se de faze reflectir a descida da taxa de IVA no preço dos bilhetes a pagar pelo "consumidor". Não pode é partir-se desse princípio, sem mais. E talvez houvesse formas relativamente simples de verificar se a medida de um percentual mais baixo implicaria ou não a redução de custos para o espectador.
Mais uma vez, chocamos de frente com uma nebulosa "política cultural" - e a expressão entre comas já reflecte alguma simpatia... Ainda se a separação fosse explicada com o investimento na dinamização de novos recintos culturais, mas não. Essa tarefa continuará comoda e cobardemene entregue ao "empreendedorismo" do poder local e à "iniciativa" privada. Nesta questão, os 6 e os 13 reconduzem-se ao grau zero da inteligência. Ou talvez não, que cabeça a minha! Afinal, que manda e pode está, com esta descriminação, a zelar pela saúde pública: ao manter uma taxa diferenciada para o que se passe ao ar livre, procura visivelmente uma medida adicional de prevenção contra os surtos e epidemias de gripe. Não é evidente?