O inverno na Anatólia de Ceylan

O que seria das paisagens turcas sem a lente de Nuri Bilge Ceylan?<em> As Ervas Secas</em> marca o regresso do cineasta que melhor observa as inquietações dos homens na vertigem sazonal. Um olhar Cinemascope.
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Nada do que é humano me é estranho." A sabedoria de Terêncio, citada algures no novo filme de Nuri Bilge Ceylan, podia servir de subtítulo a qualquer obra do realizador turco. Um cinema que se aloja nas texturas mais complexas das relações e que enfrenta o isolamento da alma, as suas ínfimas inquietações, com uma genuína consciência do lugar. Como se o elo das personagens com a paisagem se definisse por um mal-estar natural, condição, primeiro fotográfica, depois narrativa - aliás, não será mera coincidência o facto de o protagonista de As Ervas Secas nutrir uma paixão pela fotografia (outra faceta do próprio Ceylan), elemento crucial deste regresso à Anatólia, que revela o movimento da psicologia humana em contraponto à fixidez serena dos retratos em cenário de neve.

Tal como a personagem principal do anterior A Pereira Brava (2018), um jovem licenciado que regressa à aldeia da sua infância e vê frustrados os planos de publicar um livro, o professor de meia-idade que protagoniza As Ervas Secas é alguém desanimado com a vivência num lugar remoto, à espera de ser transferido para Istambul, a cidade que considera mais adequada às suas virtudes. Essa postura de desânimo, que se manifesta de vários modos, acabará por transforma-se em raiva, quando a aluna adolescente a quem dedicava especial atenção lança sobre ele suspeitas de assédio. E se é verdade que o filme neste ponto tinha tudo para enveredar pela "questão" que lança, provavelmente tornando-se um filme-tema, o valor do gesto de Ceylan passa pelo desvio eloquente de tal expectativa. Ou seja, a personagem vai apenas seguir o seu curso num jogo de consciência mútua, pela interação com os outros - a mais viva prova dessa interação surge na forma de um jantar seguido de uma longa conversa com uma mulher, também professora, que põe a nu a solidão e o tédio do anti-herói.

A conversa em causa é simplesmente uma peça de cinema magnetizante, com uma produção de pensamento ao nível dos melhores diálogos literários do cineasta de Sono de Inverno, que a certa altura nos fazem esquecer a moldura do ecrã. Estamos ali, fundidos com o ambiente, a temperatura da luz e das palavras, a sentir o sabor do vinho na boca e a contemplar ideias expostas com uma cadência apaixonada. Isto mesmo antes de Ceylan arrancar o espectador ao tecido quente do filme e, num breve interlúdio, lhe dar um vislumbre do set, como quem interrompe o feitiço da ficção para nos recompor e devolver à estrutura sensível do tempo e do espaço.

De resto, são tantas as nuances psicológicas de As Ervas Secas que qualquer resumo dos seus não-acontecimentos empalidece diante da verdadeira riqueza crescente. O único aspeto que parece pesar um pouco, poucochinho, sobre esta obra magnífica de Nuri Bilge Ceylan - mais uma -, é um recurso final à voz-off que sublinha desnecessariamente a dimensão poética.

Nada que subtraia beleza ao que veio antes: um acumulado de situações que se prestam a uma paciente análise de pormenor do que significa ser-se humano. Não há estranheza aqui.

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