O infinito Vladimir Putin
Segundo dados oficiais, que valem o que valem, a revisão constitucional agora promulgada por Vladimir Putin teria recebido a aprovação de 78% dos eleitores em julho de 2020. A oposição considerou o referendo uma farsa cheia de pressões e manobras, mas o presidente irá sempre sublinhar que a revisão mereceu o apoio popular. Todos sabemos como se conseguem resultados assim, em regimes opacos e autoritários. De qualquer modo, estima-se que perto de dois terços dos russos alinham com o presidente, apesar do marasmo económico, da insatisfação social e dos entraves à liberdade. Esse nível de aceitação - ou de resignação - deve-se à propaganda incessante que o regime faz do líder, mostrando-o como um dirigente resoluto e profundamente nacionalista, personificador e protetor da identidade russa. A população ainda se lembra da governação caótica que antecedeu a sua chegada ao poder em 1999. Putin significa para muitos estabilidade e ordem pública.
A autocracia favorece por sistema as práticas corruptas. Essa é uma das fragilidades do regime. A campanha contra o poder absoluto de Putin passa pelo desmascaramento na opinião pública da corrupção de alto nível. Atacá-lo com base nas aberrações inscritas na nova constituição não terá grande impacto.
É verdade que a nova lei permite que possa manter-se na presidência, se a vida lhe der saúde, até aos 84 anos, em 2036. Esse é o aspeto mais marcante do novo texto constitucional. É uma astúcia que visa permitir-lhe sair de cena quando achar mais oportuno, sem perder um milímetro de autoridade até ao momento final. As outras alterações relevantes são a impunidade vitalícia que lhe é concedida, bem como ao fosco do Dmitri Medvedev, e a proibição dos casamentos homossexuais.
Ver o povo russo condenado a mais um ror de anos de opressão deixa revoltado quem conhece e preza o valor da liberdade. Porém, o problema é fundamentalmente uma questão interna, que terá de ser resolvida pelo sistema político e pelos movimentos de cidadania russos. O nosso espaço de ação limita-se a condenar, insistentemente, a falta de democracia e os ataques que o regime faz contra os direitos fundamentais de cada cidadão, a começar por Alex Navalny. Mas é essencial não se ser ingénuo quanto ao perigo que Putin representa em termos da nossa estabilidade e segurança. Quando falamos de diálogo e de relações económicas não o fazemos por medo ou mero oportunismo. Fazemo-lo porque assim se deve tratar um vizinho, por muito difícil que seja, para que haja paz na vizinhança.
Um dos problemas mais imediatos relaciona-se com a aspiração da Ucrânia a fazer parte da NATO. Esta é uma ambição compreensível. Deve ser tratada segundo os critérios de adesão - democracia, Estado de direito, resolução de conflitos por via pacífica e garantias do bom funcionamento das forças armadas nacionais, incluindo em matéria de segredos de defesa. Kiev e Bruxelas não precisam de pedir autorização a Moscovo. Vladimir Putin e os seus não ficarão nada contentes quando se chegar à fase formal de negociações. Não têm, no entanto, o direito de se opor a uma decisão legítima de política externa de um Estado independente. Convém, todavia, que tudo seja feito sem queimar etapas e com a diplomacia adequada, para evitar que um processo aceitável possa ser explorado pelo adversário, como se fosse uma provocação.
Uma outra área de preocupação imediata diz respeito à coesão da União Europeia. Putin anda há muito empenhado em estilhaçar a unidade europeia. Vê na eleição presidencial francesa de 2022 uma oportunidade ímpar. Marine Le Pen tem, pela primeira vez, uma possibilidade elevada de vencer. É visceralmente ultranacionalista e contra o projeto europeu. A sua eleição representaria um risco muito sério para a continuação da UE. Putin sabe-o. Tudo fará para intervir no processo eleitoral francês e arruinar quem possa ser um obstáculo à vitória da candidata que melhor serve os seus interesses. É fundamental travar essa intromissão e, ao mesmo tempo, ter presente a lição que o líder russo nos recorda diariamente: as disputas vitais entre os grandes blocos já não se fazem apenas à espadeirada ou com tiros de roquetes.
Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU