O inferno é água salgada (com vídeo)
Estão cinco mulheres em desespero na praia de Matosinhos. Três têm os braços levantados aos céus, uma caiu de joelhos por terra e outra segura um bebé nos braços. São mulheres de pedra, estátuas de três metros de altura, dispostas em pleno areal. Tragédia no Mar, a escultura de José João Brito, é um monumento à agonia. Há 65 anos, o mar roubou a vida a 152 homens, deixou viúvas 79 mulheres e órfãs mais de cem crianças. Não fossem estas pedras e a memória dos velhos, e o maior naufrágio alguma vez registado na história da pesca portuguesa seria uma dor esquecida.
Manuel Acabou (era este mesmo o apelido) morreu há poucos dias. O pescador da Murtosa era o último de seis sobreviventes das traineiras que, a 2 de dezembro de 1947, foram ao fundo. Salvaram-se três homens da Rosa Faustino e outros três da D. Manuel II. Das São Salvador e da Maria Miguel não sobrou ninguém. Mais de cem barcos tinham largado nessa noite do porto de Leixões, à procura de sardinha. Quando o vento virou e o mar começou a encrespar, a maioria conseguiu voltar a terra, mas houve uma dezena de embarcações em apuros. Manuel Metecheta, de 86 anos, estava num dos poucos barcos que resistiram. «Eu pensava que o inferno era fogo, mas não é nada. O inferno é água salgada com vento de noroeste.»
Aconteceu numa época em que a pesca se fazia sem rádio nem GPS. O correspondente no Porto do jornal O Século, que testemunhou o naufrágio da D. Manuel II junto à barra do Douro, escreveria nesse dia um relato impressionante a partir da praia: «Para as famílias afligidas pela tragédia não houve frio nem chuva que as detivesse. Postaram-se no Cabedelo e dali não saíram. Durante a noite, à luz de archotes, iniciaram a faina dolorosa que ali as levou: procurar os corpos dos entes queridos. As mulheres enchiam a noite de gritos. Perto, o mar que lhes matara os homens rugia de forma aterrorizante.»
«Era um facto demasiado trágico para ser ignorado», diz Belmiro Galego, que já presidiu a uma série de associações de pescadores e recolheu testemunhos e recortes de imprensa sobre o naufrágio de 1947, publicando-os numa edição da Câmara de Matosinhos. «Até no seio do regime salazarista, avesso às más notícias, teria de haver eco.» E de facto, uma semana depois do naufrágio, o deputado Quelhas de Lima bradava na Assembleia Nacional por melhores meios de socorro e auxílio rápido às famílias dos pescadores. Na manhã seguinte, o governo anunciava: «Ninguém pedirá esmola.»
Para os seis que se salvaram não houve ajudas. Estar vivo era a recompensa inteira. O mesmo para a centena de homens que seguia em sete outras embarcações, que também não conseguiam entrar no porto mas conseguiriam aguentar a tempestade. A maioria continuou a fazer vida do mar, mas esse não foi o caso de Manuel Acabou.
«Depois da tragédia, emigrou para a América. Passou lá muitos anos, e pesca nem vê-la», conta Manuel Lopes dos Santos, tenente reformado da Marinha. «O Manel tinha 19 anos em 1947, e era daqueles rapazes bem-dispostos, cheios de luz. Mas quando voltou à Murtosa vinha carregado de sombras.» Albertina Vieira tem 80 anos e a história da pesca sulcada no rosto - olhos marítimos, rugas preocupadas. Foi vizinha de Acabou durante trinta anos. «Eu nunca, nunca, nunca tinha ouvido uma palavra ao Ti Manel sobre o naufrágio. Mas, antes de morrer, fartava-se de perguntar porque é que não tinha ido antes ele nesse dia, que era solteiro.» O irmão e o cunhado, ambos casados e com filhos, também seguiam no Rosa Faustino. Afogaram-se nesse 2 de dezembro de 1947. Os corpos nunca foram encontrados.
Para ser absolutamente rigorosa, a história tem de começar há 65 anos, sim, mas em novembro. «O ano de 1947 estava a ser muito mau para os pescadores e desde o final de outubro que as redes não apanhavam sardinha», conta o pescador Delfim Nora, sentado numa poltrona larga do Núcleo dos Amigos dos Pescadores de Matosinhos, onde estão expostos barcos, livros sobre navegação e, numa sala contígua, fotografias dos 152 que perderam a vida a 2 de dezembro. «A fome era mais que muita e, ainda por cima, faltava pouco para o fim da safra.» A sardinha pesca-se de abril a janeiro, nos meses do defeso ninguém põe pão em casa. Com o Natal a chegar e as barrigas a reclamarem fome, os tempos eram de desespero. Pelo presente e, sobretudo, pelo futuro.
«No dia 1 de dezembro chegaram ao porto de Leixões três traineiras carregadas de sardinha. E foi isso que mudou tudo.» Cada embarcação tinha recolhido para cima de mil cabazes de pescado, afinal havia cardumes inteiros nas águas frente à praia de Mira. Foi uma golpada de sorte, que assegurava sustento para os próximos meses. «Então os outros mestres, entusiasmados com a perspetiva de uma boa safra, convocaram as companhas e mandaram os homens estar no cais às cinco da tarde. As previsões meteorológicas apontavam para tempestade, mas quem é que queria saber?», pergunta Delfim. «O meu avô, que era o Delfim do Diabo, mestre da Santa Cruz. Foi o único a não querer fazer-se ao largo, andava desconfiado de um ciclone.» Horas mais tarde, a realidade dar-lhe-ia razão.
Ao cair da noite, as outras 108 traineiras largaram de Leixões. Hoje, só existem 38 embarcações registadas em Matosinhos mas, nesses tempos, as famílias que viviam da pesca contavam-se aos milhares. Manuel Lima, 18 anos acabados de fazer, seguia na Maria da Glória. «Até sul de Aveiro, estava mar de cachaça. Conseguimos encontrar pesqueiro e lançámos rede eram dez da noite. Já estava vento de sudeste com vaga larga de noroeste. Enchemos a popa de peixe, uns trezentos cabazes, e o mestre percebeu que estava a ficar muito fresco, por isso anunciou que já chegava.» Ao darem a volta para tornar a Leixões, avistaram a Rosa Faustino e a São Salvador, que ainda andavam ao cerco.
Carlos Ferreirinha, que seguia na São José V, diz que o tempo virou tão depressa que os homens só deram por ela quando a água entrou na casa das máquinas. «Veio um vagalhão que nos molhou o carvão todo, a traineira era a vapor. Sem motor, já sabíamos que não nos salvávamos. Eu tinha 17 anos, era assistente de máquinas, e fui chamar dois camaradas. Começámos a baldear a água e dei as costas à porta, para não entrar mais do que a que saía.» Iam pondo o carvão junto à fornalha, para secar.
A São José V parecia de papel. A determinada altura dobrou tanto para estibordo que o mastro foi à água. «Ai que morremos aqui todos. É hoje, é hoje!» Ferreirinha lembra-se de ouvir os pescadores mais velhos gritar. «Mais fé, mais fé», respondia o mestre. E depois uma vaga atingiu a traineira em cheio, partindo o vidro da ponte, levando na torrente bússolas, luzes e o João da Murtosa, que não se agarrara aos cabos a tempo. «A partir daí estávamos cegos e parecia tudo condenado.» Mas o homem que caíra ao mar tivera uma sorte dos diabos porque, minutos depois, no meio da ondulação, uma vaga fê-lo aterrar direitinho no convés de outra embarcação, a Santa Margarida.
Mais de noventa barcos entraram nos portos que estavam mais a jeito, de Leixões a São Pedro de Moel. Mas ainda havia 11 traineiras ao largo e o vento agora soprava a 80 nós (cerca de 150 quilómetros por hora). A tempestade tinha-se transformado em ciclone e a esperança, para os que ainda andavam ao mar, era parca. Na Maria da Glória, o mestre já há muito tempo tinha mandado deitar borda fora o peixe, mas o barco continuava pesado de popa. «Então rebentámos com as bordas falsas, para que a água, quando entrasse, tivesse por onde sair», retoma a conversa o Lima. O homem guarda em casa uma miniatura do barco onde só voltou a viajar em noites de pesadelo - e usa-se dele para explicar o que as ondas foram fazendo à traineira.
«Tínhamos três pescadores muito experientes a bordo, dos que passavam meses fora ao bacalhau. E eles aconselharam o mestre a afastar-se da costa, porque aí o mar enrolava muito. Bendita a hora.» Às tantas, o motor cedeu, o cabo da rede havia-se enrolado na hélice. Estavam quase à deriva, as luzes do farol da Boa Hora ainda longe e, distante, na barra do Douro, adivinhavam-se as formas da D. Manuel II a ser enrolada nas ondas. Era uma da manhã.
Aos primeiros raios de luz avistaram duas companhias, a Nossa Senhora da Guia e a Boa Anita. Permaneceram ao largo, numa espera com ondas de sete metros e um vento mais furioso do que um lobo faminto. «Só pensava se não era pela própria morte que eu estava a aguardar. Foi um pesadelo.» Umas milhas para sul, a São José V tentava lutar contra a sina. Murtosa, o tal marinheiro que caíra ao mar, avisara toda a gente que o barco tinha ido ao fundo, dali não se safara ninguém. Mas conseguiram chegar a Leixões e pegar o motor. «O barco até se punha em pé com as vagas», torna Ferreirinha. «Depois acalmou um bocadinho e o mestre gritou: é agora.» O carvão despejado no motor, a potência engatada no máximo e, com a traineira toda descascada, lá atravessaram a barra.
«No cais estava o meu pai, que pensava que eu tinha morrido, e agarrou-se a mim a chorar. Disse-me que o mar tinha roubado a D. Manuel II e a Rosa Faustino e só nessa altura reparei que os homens estavam todos a chorar como meninos.» Pirou-se para casa, em Leça da Palmeira, e, quando entrou, a mãe e as irmãs repetiram o brado. Era como se tivesse ressuscitado. «E eu que só queria fugir dali, não podia deixar que me abraçassem. As mulheres, agarradas, aos gritos, faziam-me pensar nos homens que não iam voltar.»
Nos anos 1940, a Guarda Fiscal proibia que se frequentasse a praia à noite, por causa do contrabando. Mas as mulheres e os pescadores que tinham regressado rumaram ao areal, alguém podia dar à costa. A corrente tinha levado os homens para sul e os seis que se salvaram foram dar ao Cabedelo, perto da foz do Douro. Dias depois, o Jornal de Notícias entrevistava os sobreviventes no hospital e os homens confessavam: «Na praia ouviam-se gritos de socorro de outros homens que tinham chegado perto da costa, mas não havia quem lhes prestasse auxílio.»
Às primeiras horas de sol, a praia era um cemitério de pescadores. As famílias iam chegando à procura dos seus e cada corpo encontrado era grito mais alto do que o silvo do vento. «Ai que ainda me dá arrepios lembrar aquelas mulheres, que tinham perdido os homens, o sustento e tudo», recorda Manuel Metecheta, que havia atracado às sete da manhã sem problemas de maior. Viu chegar todos, viu afundar a Rosa Faustino e viu os destroços da D. Manuel II. A Maria Miguel e a São Salvador ele não viu. Ninguém viu. Foram engolidas sem testemunhas pela tempestade.
Nos dias seguintes o mar era muito. Mas, a 4 de dezembro, Manuel Silva, o Malhão, que tinha andado com os outros à sardinha mas trabalhava nos socorros a náufragos, meteu-se no salva-vidas e fez-se ao largo. «Recolhi dezenas de cadáveres da água, muitos eram meus amigos. Eram os que tinham posto os coletes, estavam para ali a flutuar congelados.» Fazia um nó de guia com uma corda e içava-os para bordo. «Sempre que chegava ao cais, era outra gritaria desgraçada. Mas o pior foi para as viúvas dos que nunca apareceram. Ficaram sem maridos e nem sequer puderam velá-los.»
O naufrágio deixou marcas profundas. Fernando Sá Pereira, atualmente presidente da Associação de Comerciantes de Matosinhos, perdeu o pai nessa noite. «Mas o meu avô perdeu, numa só noite, três filhos e quatro sobrinhos. De um dia para o outro, foram-se todos os homens da família.» Fernando era demasiado pequeno para se lembrar da tragédia, tinha 10 meses. Há quem diga que é ele o bebé que uma das mulheres de pedra segura nos braços. «Não sei, mas sei que o meu avô nunca deixou que eu ou os meus irmãos considerássemos sequer a hipótese de vivermos do mar.»
O Estado pagou cinco contos a cada viúva, mais um conto de réis por cada órfão que o pescador tivesse deixado. Alguns dos que sobreviveram fizeram as malas e partiram para longe da praia. E, nas semanas seguintes, ia-se ouvindo a notícia de que mais um corpo havia dado à costa. Em Vigo, ou na ria de Aveiro, ou na Figueira da Foz. «Eu tinha 6 anos, não me lembro de muita coisa», diz Delfim Nora, ainda no cadeirão do Núcleo de Amigos dos Pescadores. «O que sei é que, de repente, as mulheres estavam todas vestidas de preto e nós já não podíamos rir alto no recreio da escola.» E também diz que começou a sair menos fumo da chaminé de algumas casas, porque não havia o que comer. «Passado pouco tempo, o general Craveiro Lopes, presidente da República, veio visitar as viúvas do naufrágio e, nesse dia, deram-nos pão com marmelada e banana. O João e o Toninho, que tinham perdido os pais na tragédia, viraram-se para mim e disseram-me uma coisa que nunca esquecerei. Hoje é o dia mais feliz da minha vida. É, foi isso que eles disseram.»