O incidente que levou Sócrates a calar-se
Só na derradeira etapa, na última semana, a campanha das legislativas se livrou das questões secundárias que a tinham monopolizado. Aqui se conta o caso pouco conhecido que levou José Sócrates a deixar de dar entrevistas e a fazer declarações.
E foi assim que as legislativas entraram na última semana. Enfim, a campanha dedicada só às eleições para formar governo! Uma reviravolta em relação à pré-campanha e parte da campanha, quando factos colaterais - presidenciais, Sócrates... - só tinham confundido. Dois acontecimentos permitiram a mudança. Primeiro, Marcelo Rebelo de Sousa a mergulhar no Tejo e, sem precisar de o dizer, a emergir natural candidato presidencial. As imagens tornaram-se virais e o slogan "Que tal Um Presidente Inteligente?" foi sentido uma necessidade urgente. Esse acontecimento remeteu o assunto para o seu devido tempo, não antes.
Logo no dia seguinte, domingo, 27 de setembro, o Expresso ouviu os candidatos potenciais. "Em Belém, qual a sua medida prioritária?", quis saber no online. Rui Rio respondeu: "Transformar, com controlo estrito dos custos, o Museu dos Coches em Museu dos Automóveis Antigos do Circuito da Boavista." Maria de Belém anunciou que a grande medida do seu primeiro mandato seria oferecer um cargo digno ao antigo presidente da Associação Nacional de Farmácias: "João Cordeiro daria um grande chefe da Casa Civil." Sampaio da Nóvoa não respondeu porque estava desgostoso com as suas próprias entrevistas. Em agosto, ao DN, ele contara por ingenuidade que, na infância, a família, sete pessoas mais a empregada, malas e um cão, iam de férias num Volkswagen Carocha. O Ministério Público investigou uma suposta "exposição da vida de outrem a perigo decorrente de transporte" - agravada por o pai de Nóvoa ser juiz - mas o inquérito foi para a gaveta por o prazo já ter caducado. Quanto a Marcelo, respondeu: "Fazer o que deve fazer um Presidente inteligente." Com esses dados os portugueses deixaram, pois, de se preocupar com as presidenciais. Estavam servidos para janeiro de 2016, precisavam era de pensar na semana que vinha aí.
Um segundo facto ajudou os portugueses a afastar outro fenómeno secundário que os distraía das legislativas. A origem esteve num incidente pouco conhecido. Em Évora, na cela vizinha à de José Sócrates, estava detido o cidadão estrangeiro Jaume Marquet. Os portugueses conheceram-no: foi aquele espectador que saltou para o relvado na final do Europeu de 2004, Portugal-Grécia, interrompeu o jogo e atirou uma bandeira da Catalunha a Figo. Foi expulso do país e tornou-se famoso na sua carreira de streaker, como se chama ao narcisista que se mete nos grandes acontecimentos - finais de futebol, corridas de F1... - e quer sempre ser ele a vedeta. O catalão fora detido dias antes em Elvas, ao tentar entrar no país.
Em princípio de setembro, a família do catalão foi visitá-lo e explicou à direção da prisão o caso clínico do homem. Chamava-se "síndrome de Jimmy Jump" e tinha cura temporária: um só comprimido na sopa curava-lhe os ímpetos de se meter onde não era chamado e garantia uma calmaria de cerca dum mês. A direção concordou em tentar o medicamento, estava farta do homem que até no recreio da prisão interrompia os jogos dos outros detidos. Acontece que o cozinheiro se enganou e a sopa que devia ser servida a Jaume Marquet foi ter à cela 44. A 9 de setembro, quando Sócrates foi para casa, recusou-se a fazer declarações públicas. Em Évora, Jaume Marquet continuava o intrometido do costume. Mas a verdade é que só depois de 4 de outubro Sócrates voltou a dar entrevistas.
Na segunda-feira, 28 de setembro, Maria Luís Albuquerque acabou por saber de forma desagradável que as coisas estavam a mudar. Pela manhã, apareceu em São Bento a pedir audiência a Passos Coelho. Ainda com as sondagens da semana anterior a luzir-lhe o destino, ela subiu as escadas para o primeiro andar do palacete e virou à esquerda, para a sala de trabalho com a mesa oval, onde ele gostava de trabalhar. Foi recebida de forma seca, embora com a voz baixa do costume.
- Não devia estar na lota de Setúbal?
Foi o que perguntou Passos à sua cabeça de lista da Outra Banda, depois dum aceno breve e já com os olhos voltados para o iPad. Com a distração dos bem-aventurados, Maria Luís nem deu pelo remoque. Afinal, regressava à sala onde já fora muito feliz. Três semanas antes foi ali que ele disse: "Maria Luís, se ganharmos, você forma o governo." Ainda ruborizada, ela confirmaria que não fora confusão: "A Maria Luís vai a primeira-ministra", repetiu ele, concluindo: "E eu candidato-me a Belém." Naquele dia, a primeira parte da proposta foi como um flash que varreu o resto e, para dizer a verdade, a segunda parte ainda ela a via encandeada. Queria ele, mesmo, concorrer a Belém?... Enfim, para o que importava, o pressuposto eram as sondagens, então, boas; e essas ela sabia que eram ainda melhores. Fora, aliás, isso que a trouxera ali. A campanha iria em crescendo, o voto era já no domingo e havia pouco tempo para umas coisitas a tratar... "Posso ir ao gabinete?", disse ela, mexendo na malinha de mão. Quando o viu de sobrancelhas suspensas, ela soube que tinha de dar explicações que, deu-se então conta, preferia não dar.
- Era para tirar as medidas dos cortinados novos...
Acabou a frase com o mesmo rubor da outra vez. Passos Coelho sentiu que era a vez de ele dar explicações. Pediu para Maria Luís se sentar, colocou ainda mais a voz - ela não gostou - e disse, abanando a cabeça como que concordando por ambos: "Temos de mudar de planos..." Afinal, era melhor deixar as coisas como no plano inicial. A coligação ganhava e ele formava governo. Ela continuava ministra de Estado, "evidentemente", e das Finanças, "claro", mas ele achava que ainda tinha de se sacrificar. Concorrer a Belém seria como se... se ele fosse abandonar o barco... "A Maria Luís não acha?" Ela disse que achava. E que, se partisse já, ainda chegava a horas da campanha na lota...
Ele levou-a à porta, sorriso grave. Mas mesmo esse desfez quando voltou a pensar na presença certa de Marcelo nas presidenciais. Não, o melhor era não concorrer com ele.
Continua na segunda-feira...