"O ideal seria ler a Bíblia no original e não na tradução"

O segundo volume da Bíblia traduzida por Frederico Lourenço chega hoje às livrarias e conta com os textos Atos dos Apóstolos, Epístolas e Apocalipse, ficando assim finalizada a publicação do Novo Testamento.
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O tradutor Frederico Lourenço esteve no Festival Literário da Madeira e o tema da sua participação não podia fugir à religião, o assunto que nos últimos e próximos anos estará colado à sua pele devido à tarefa a que se entrega: traduzir a Bíblia do grego. Acredita que a publicação do primeiro de seis volumes dos textos religiosos terá "sugestionado o júri" na atribuição do Prémio Pessoa, situação que o orgulha: "A tradução completa do Novo Testamento é o melhor trabalho que fiz até hoje." Com os restantes quatro volumes a serem editados nos próximos anos existirá, pela primeira vez em língua portuguesa, a tradução integral da Bíblia Grega.

Não receia ficar apenas conhecido como o tradutor do grego da Bíblia?

Se isso acontecer é uma honra porque significa que o projeto foi bem sucedido e que as pessoas se interessaram por ler. De qualquer modo, eu antes era conhecido como o tradutor de Homero, o que também é uma honra. Ser reconhecido como tradutor do grego não é para mim problema. Afinal, é o meu principal contributo para as nossas letras. Mais do que os livros que escrevi.

É a tradução de um homem só ou é um homem que está só nesta tradução?

Pode ser de um homem só, mas não me sinto só porque tenho o apoio de todos os autores, comentaristas e estudiosos da Bíblia que tenho vindo a estudar para me preparar e ajudar nas dificuldades que vou sentindo nesta tradução. Estou rodeado de livros que vêm desde o século XIX até ao presente e sinto-me a participar num longo processo de dar a conhecer o texto da Bíblia.

O padre Tolentino Mendonça realçou a "dimensão pedagógica" desta nova tradução. Revê-se nessa perspetiva?

Sim, até porque gostava que o fosse no sentido de criar curiosidade às pessoas de aprenderem grego. Isso é que seria bem pedagógico! O ideal seria ler a Bíblia no original e não na tradução. Nenhuma tradução pode dar a dimensão exata daquilo que está no texto original, quer grego quer hebraico. É pena as pessoas pensarem que o estudo do grego e do hebraico é algo que é só para biblistas. Eu acho que todos os cristãos deviam ter alguma noção das línguas em que foi escrita a sua Escritura. Tal como fazem os judeus.

O primeiro volume conseguiu novos leitores para a Bíblia?

Acho que sim. Chegou a agnósticos e ateus, que empreenderam a leitura por saberem que é uma tradução académica em vez de católica ou protestante e que pretende abordar a Bíblia sob uma perspetiva histórica e não dogmática ou teológica. Deste modo, considero que muitas pessoas que normalmente não leriam a Bíblia se interessaram pelo registo mais neutro que procurei imprimir.

O primeiro volume contou com várias polémicas. Qual a que mais o irritou?

Nenhuma me irritou porque senti que o acolhimento foi muito positivo. Houve a expressão de um ponto de vista previsível, vindo de um determinado setor religioso, mas isso é normal. Cada denominação do cristianismo tem a sua maneira de abordar a Bíblia. A minha tradução não está pensada para nenhuma delas, portanto tem potencial para desagradar igualmente a católicos, a protestantes, a mórmones ou a Testemunhas de Jeová. Ao mesmo tempo, dentro desses quadrantes religiosos, houve pessoas que se interessaram pela minha abordagem e que acham que esta Bíblia não-dogmática pode ser complementar à abordagem teológica e religiosa. Penso que as pessoas já perceberam que ler a Bíblia dentro de uma Igreja é diferente de a ler numa universidade laica, como é a de Coimbra - são duas realidades. Os historiadores e os linguistas não fazem a mesma leitura da Bíblia que farão os teólogos católicos e protestantes. Tudo isso é normal.

O que achou da acusação de ter criado suspeição sobre as outras bíblias?

Nunca fiz isso. Aliás, sempre elogiei uma excelente tradução que existe em português, a chamada Bíblia dos Capuchinhos. Contudo, é uma tradução católica da Bíblia; a minha tradução privilegia outra abordagem e informações mais de índole histórica e linguística. Haverá outras traduções da Bíblia com que não concordo por motivos estritamente académico-universitários, mas nunca falei delas.

O lançamento do primeiro volume da Bíblia transformou-se no acontecimento editorial do ano. A que se deve?

Só a própria editora o poderá comentar, porque não sei medir o que é normal neste contexto. Fiquei satisfeito pelo acolhimento e agora é continuar com calma até ao fim.

Teve alguma surpresa ou percalço na tradução deste segundo volume?

O trabalho foi começado com muita antecedência, tanto assim que o segundo volume já tinha sido entregue quando saiu o primeiro. Até agora não aconteceu nenhum percalço: está a correr tudo bem e dentro do cronograma. Como surpresa, houve textos que eu não conhecia tão bem e que, graças ao ato de os traduzir, passei a compreender e apreciar de outra forma.

Pode dar um exemplo?

Um bom exemplo são as Epístolas de Paulo, apóstolo de quem eu nem era muito simpatizante. Agora o texto de Paulo é aquele a que mais volto. É um texto fascinante do ponto de vista espiritual, intelectual e filosófico.

Esta tradução é para o grande público. Isso obriga-o a facilitar um pouco?

Não facilito rigorosamente nada. A única facilidade foi a opção de transliterar as palavras gregas e, no caso do Antigo Testamento, as hebraicas, porque não coloco nada em carateres gregos ou hebraicos. De resto, fiz tudo com o rigor de um trabalho académico, que é como considero que devo agir, enquanto professor universitário que sou.

Esta tradução destina-se apenas a um leitor religioso?

Não pensei este trabalho para pessoas religiosas, nem o contrário, mas sim para quem tem curiosidade em obter informações sobre a Bíblia, despojadas de doutrina e de dogma, que provavelmente não encontraria noutras traduções.

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