O humor humaníssimo de Kaurismaki

Ovação sentida para The Other Side of Hope, de Aki Kaurismaki, que só escandalosamente não estará no palmarés dos ursos.
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Juntamente com o chileno Una Mujer Fantastica, o novo filme de Aki Kaurismaki, The Other Side of Hope (já comprado para Portugal) é o grande favorito ao Urso de Ouro. O finlandês cada vez sabe mais da vida, o que é o mesmo que dizer que cada vez sabe mais de cinema. Esta sua comédia com alma política é de uma sabedoria humanista única, mesmo que não seja o seu melhor filme.
Situado na Helsínquia dos nossos dias, esta obra acompanha o percurso de dois homens aparentemente sem nada em comum: um sexagenário vendedor de camisas e um refugiado sírio que chega à capital finlandesa através de um cargueiro. Depois de algumas peripécias, o sírio acaba por trabalhar com o finlandês, que entretanto venceu uma fortuna num jogo de cartas e abriu um restaurante. Pelo meio, percebemos que ao refugiado é-lhe negado o asilo e que nas ruas escuras de Helsínquia há cada vez mais racismo.

Kaurismaki aposta aqui muito num humor físico e burlesco, tendo arrancado da plateia do visionamento de imprensa estrondosas gargalhadas. Gags que têm uma pontaria afiada com uma certa memória do cinema mudo, ideias cinematográficas que nunca chocam com diálogos secos e com aquilo que já assumimos ser humor de marca registada do autor. E, pelo meio, claro, um discurso de otimismo por entre o pessimismo. O finlandês não põe paninhos quentes na consciência moral do seu país quanto à situação dos refugiados mas acredita sempre nas personagens boas. Como se para o horror da destruição de Alepo (mostrada em imagens de noticiários), sobrasse sempre a possibilidade de um rejuvenescedor happy-end. Aliás, somos nós os espetadores quem temos de fazer (ou sonhar) com esse final feliz. Uma pequena grande maravilha esta esperança de Kaurismaki.

Enquanto isso, um dos filmes mais falados do festival, é The Young Karl Marx (igualmente adquirido para o nosso mercado), de Raoul Peck, sobre a amizade entre Engels e Marx durante a sua juventude. Passou na Berlinale Special, secção destinada aos filmes que não podem ou querem estar com a pressão da competição, e é uma super-produção europeia realizada pelo haitiano que também tem no festival I'm Not Your Negro, documentário sobre a história do racismo na América e que está nomeado ao Óscar de melhor documentário. Peck, ex-Ministro da Cultura do Haiti, estudou em Berlim nos anos 1980 e sempre ficou fascinado por Karl Marx. Um fascínio também partilhado por Pascal Bonitzer, cineasta e argumentista francês que o ajudou no argumento.

Esta história da juventude dos homens que criaram o manifesto comunista serve sobretudo como objeto didático, um pouco como um agradável manual para ensinar o comunismo ao grande público. O filme vai ser um "crowd-pleaser" (sessões com muitas ovações) porque sabe entrar dentro do coração do espetador sem ser apenas histórico. Para Peck, a prioridade era mostrar um Marx que depois de se apaixonar também se apaixonou pela vida. Boa surpresa num festival que está a superar as expectativas e, como sempre, a esgotar todas as sessões numa cidade em obcecada com cinema.

Em Berlim

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