O homem que gostava de destapar tesouros esquecidos
Dizer Alan Curtis era dizer Il Complesso Barocco, a orquestra que criou em 1979 e à frente da qual viria a marcar a paisagem das interpretações fidedignas do repertório barroco, em concertos e em gravações, ao longo das mais de quatro décadas seguintes. Fidedignidade que passou inclusivé pela recuperação do instrumentário usado originalmente para tocar essas obras.
Mas a expressão "interpretações fidedignas" é demasiado eufemística, porque o trabalho de Curtis superava em muito esse intento. Digamos que, nele, ser fidedigno, isto é, ir de encontro e traduzir (tanto quanto o conhecimento, coadjuvado pela intuição - aquilo que em inglês se designa de "educated guess" - no-lo permitem), as intenções do compositor acerca de determinada obra era não mais que o substrato para um empreendimento muito mais vasto e que se traduzia em tornar as obras vivas e significantes para a nossa contemporaneidade, assim assegurando a sua continuidade no repertório.
Musicólogo (e cravista) de formação, Alan Curtis era ele próprio amiúde o editor das obras que "desencantava". Que por vezes não estavam completas, carecendo então de um trabalho de reconstrução (que por vezes bordejava a "sugestão artística") que era assim empreendido. Um desses casos deu-se com o Sosarme, de Händel, ópera que conheceu várias versões e que Curtis apresentou em Lisboa (S. Carlos) sob o nome de Dionigio, re di Portogallo e em Espanha sob o nome de Fernando, re di Castiglia. Outro caso semelhante deu-se com nova visita ao São Carlos, um par de anos depois, para apresentar o Motezuma de Vivaldi: novo trabalho "detetivesco" de reconstrução e colagem/empréstimo, seguindo, afinal, uma prática muito comum na era barroca.
Outras vindas de Curtis a Lisboa deram-nos a ouvir L'Incoronazione di Poppea, de Monteverdi (ópera do qual foi pioneiro na justa performance de época e de que existe uma gravação ao vivo, de 1991), Il re pastore de Mozart e Rodrigo, de Händel.
Esta pequena lista das visitas a Portugal mostra-nos o espectro de repertório favorecido por Curtis: dos alvores do Barroco (com incursões ao pleno Maneirismo) até ao pré-Classicismo/Classicismo inicial (visitando Mozart, Haydn, Gluck). E mostra-nos tanto a largueza do seu repertório como o ascendente da ópera e de Händel dentro dele - dois traços que foram ambos verdadeiros em Curtis.
Porque ao contrário do que se possa pensar, Curtis dirigiu e gravou muito mais que ópera de Vivaldi e Händel. Uma prospeção breve leva-nos de Gesualdo a Cimarosa, passando por um longo cortejo de nomes (mormente italianos) e de obras a que ele voltou a dar "som", séculos depois. Um exemplo é o de Portugal bem conhecido Niccolò Jommelli, do qual Curtis fez a primeira reposição moderna de uma ópera, com La schiava liberata (mais tarde, dirigiria também o Ezio)!
Mas o seu maior contributo foi sem dúvida o de ter trazido para a vida musical moderna (teatros de ópera e suporte áudio) as óperas de Georg Friedrich Händel. O compositor deixou 42 óperas, das quais nem uma mão cheia se faria com regularidade antes de Curtis. O seu esforço e dedicação traduziu-se na gravação de 15 diferentes títulos (!) de Händel, muitos deles premiados; e vários dentre eles já se estabeleceram com regularidade no repertório internacional.
Mas também contribuiu para o ressurgimento de Vivaldi enquanto autor lírico: Ercole sul Termodonte, Catone in Uttica, Il Giustino e o citado Motezuma são disso exemplos.
Curtis e o seu Complesso Barocco gravaram quase sempre para a Virgin Classics, chamando uma plêiade de grandes nomes do canto barroco para atuações e gravações. Com vários dentre eles, Curtis faria também discos/recitais temáticos (por exemplo, árias de Porpora com Karina Gauvin, ou de Vivaldi com Simone Kermes).
Há portanto uma aliança ideal entre rigor e conhecimento profundo (do maestro), proficiência (dos instrumentistas do Complesso) e qualidade e especialização dos solistas vocais.
Natural do Michigan, onde nasceu em 1934, diplomado e doutorado pela Universidade do Illinois, Alan Curtis estudou ainda dois anos em Amesterdão com Gustav Leonhardt (cravista, musicólogo e maestro como ele), o grande "pai" da redescoberta fiel da música pré-1750.
A carreira de cravista (gravou Couperin e Bach) cedo foi acompanhada da de maestro e de uma característica que seria a sua "marca d'água" enquanto intérprete: a redescoberta de repertório esquecido. Fosse de autores desconhecidos, fosse de nomes famosos. Nas múltiplas produções de ópera em que se envolveu, nas tantas gravações que deixa, isso transparece claramente e será esse porventura o seu legado mais valioso, também porque sempre assente em seriedade musicológica.
Alan Curtis faleceu ontem (dia 15), em Florença, aos 80 anos.