O homem normal do nariz partido
Há dois narizes partidos famosos em Hollywood. O do cantor e actor cómico Jimmy Durante, hoje bastante esquecido, e que respondia pela alcunha de The Great Schnozola (mais ou menos O Pencudão), e o de Karl Malden, que morreu há pouco mais de uma semana, em Los Angeles, quase com 100 anos. Não fazia filmes desde 1987 e o seu último papel foi num episódio de uma série de televisão em 2000, mas toda a gente se lembrava dele.
Malden foi um dos maiores actores secundários do cinema americano. Tão grande, que é injusto chamar-lhe "secundário". Pegando nas palavras de António Lopes Ribeiro, digamos que ele foi um grande "secundário principal". Vêem-se cada vez menos pessoas "normais" no cinema americano, no sentido de pessoas "reais", das que podemos cruzar na rua ou reconhecer do dia-a-dia. Com o seu nariz torto, cara feia e uma voz mesmo nada simpática aos tímpanos, Karl Malden, filho de mãe checa e pai sérvio, interpretou como poucos essas pessoas normais ao longo de quase meio século.
No artigo de homenagem que lhe escreveu no The New York Times, o crítico de cinema A. O. Scott notou que, apesar dessa qualidade de homem "ordinário" (por oposição a "extraordinário"), que trazia consigo um forte "lastro de realidade", Malden contou entre os seus melhores e mais memoráveis papéis os de pessoas "demasiadamente normais", às quais faltavam as qualidades ou as características dos principais protagonistas, fossem elas positivas ou negativas. É o caso de Um Eléctrico Chamado Desejo (1951), do seu grande amigo e cúmplice Elia Kazan, onde o seu bondoso e desajeitado Mitch é completamente esmagado pelo boçal e brutal Stanley de Marlon Brando. (A recompensa desse retrato da normalidade desconfortável derrotada pela animalidade afirmativa foi o Óscar de Melhor Actor Secundário, no ano seguinte.)
Kazan, aliás, foi quem deu a Malden um trio de papéis cinematográficos inesquecíveis. O do citado Mitch do Eléctrico, o do indignado e corajoso padre Barry de Há Lodo no Cais (1954), que serve de bússola moral ao pugilista Terry Malloy de Marlon Brando, e o do proprietário sulista do então atrevidíssimo, e boicotadíssimo, A Voz do Desejo (1956). Contrastando abismalmente com a personagem da sua jovem e sensual mulher Baby Doll (Carroll Baker), Karl Malden compõe em A Voz do Desejo um dos mais atarantados e mais patéticos cornudos de toda a história do cinema.
A longa e forte amizade que unia o actor e Elia Kazan teve o seu ponto público mais alto quando, em 1999, Karl Malden, também antigo presidente da Academia de Hollywood, fez lobby para que Elia Kazan recebesse um Óscar honorário de carreira. Remando contra a maré da mais rancorosa esquerda de Hollywood, Malden proclamou e insistiu que a política não devia meter-se no caminho da excelência artística. E conseguiu que Kazan, responsável pela sua mudança de nome, de Mladen George Sekulovich para Karl Malden, recebesse a merecidíssima estatueta.
Um homem normal, intérprete de personagens tiradas à vida real, e amigo do seu amigo: Karl Malden.