O homem na escrita no desenho e pintura

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Nos meios cultural e político suspeitava-se, entretanto, quem seria o "misterioso escritor", em especial pela temática romanesca, a maneira como o texto e as personagens realizam uma dialéctica fundada no movimento do neo-realismo, mas sobretudo pela abundante matéria vivencial, mais explícita ou não, num timbre ficcional dentro dos cânones do "realismo socialista" e de um "realismo-humanismo" próximo de Gorki. Outros autores, em Portugal, abraçaram esta corrente, entre eles Alves Redol, Fernando Namora e Manuel da Fonseca, escritores que viriam a apurar o estilo e a revigorar o casamento da forma com o conteúdo.

Dos escritores portugueses ligados ao neo-realismo refira-se ainda Soeiro Pereira Gomes, de quem Álvaro Cunhal ilustrou a capa do romance Esteiros (1941), obra com o sóbrio cunho do autor falecido aos 40 anos.

Manuel Tiago (ficcionista publicado nas Edições Avante!) assina, entre outras obras Até Amanhã, Camaradas (adaptado para televisão/SIC numa realização de Joaquim Leitão), Cinco Dias, Cinco Noites (levado ao cinema por João Fonseca e Costa), A Estrelade Seis Pontas, ACasa de Eulália, Fronteiras, UmRisco na Areia, Sala 3 e OutrosContos, Os Corrécios e Lutas e Vidas. Esta escrita romanesca, situada na primeira metade do século passado, é atravessada pelo ideal sócio-político de um vulto que, entre seguidores e discordantes, marcou a história do comunismo em Portugal no século XX. É entre as décadas de 30 e 60 que, por mais de uma vez, Cunhal sofre a prisão.

Desde jovem interessado pelos universos da política e da cultura, dentro e fora do espaço nacional, Cunhal contacta, por exemplo, na Seara Nova e no Diabo, com figuras da intelectualidade. Privou nomeadamente com Bento de Jesus Caraça, Mário Dionísio, Agostinho da Silva e Fernando Piteira Santos. E manteve polémica com Régio sobre estética, defendendo um "compromisso social da arte e da literatura". Considerou, entretanto, Eça "notável" e Saramago "ímpar".

Sem recurso a pseudónimo publicou, além de análises histórico- -políticas, o ensaio A Arte, o Artistae a Sociedade (Caminho, 1998), do qual ressalta (independentemente dos pontos de vista do ensaísta) a grandeza intelectual da personalidade de Cunhal (menos conhecida do público). Grandeza que sobressai, também, na tradução que fez para a língua portuguesa d'O ReiLear, de Shakespeare, volume lançado pela Caminho em 2002, com introdução de Luís de Sousa Rebelo.

Na arte pictórica, um traço ingénuo define, nos anos 30, os desenhos de Álvaro Cunhal para o jornal O Gaiato, dirigido por Alice Ogando. O gosto e o jeito de desenhar, bem como a pintura, ganham depois outra perspectiva na linguagem pictórica de Cunhal, com uma imagética ligada ao realismo social e político de uma época. Nas celas da Penitenciária de Lisboa e no Forte de Peniche (décadas de 40 e 50) preenche o isolamento com papel, madeira, lápis e tintas que lhe chegam às mãos.

Pouco se conhece da obra pictural do homem que, acima da paixão pelas artes e do curso de Direito, colocou a luta e o ideal políticos. Os Desenhos da Prisão e a colecção de telas reproduzidas no álbum Projectos, de Álvaro Cunhal, permitem, contudo, avaliar--se uma faceta que, prolongando, em certa medida, o ser político, desoculta uma sensibilidade estética em que as ideias e a encenação não se desligam de uma preocupação com a técnica e o estilo.

Cunhal não escondia o fascínio por museus e pelos artistas dos mais diferentes tempos e géneros. Advogando a liberdade criativa, "a descoberta de novos valores formais" - como sublinha no ensaio A Arte, o Artista e a Sociedade (Caminho, 1998) entendia, porém, que a arte deve levar "à sociedade, ao ser humano em geral, uma mensagem (...)". Esta reflexão, implícita nos desenhos e óleos como os reproduzidos nestas páginas, fê-la igualmente junto de amigos como Mário Dionísio, e mesmo com Abel Salazar, apesar das suas divergências.

Publicados pela primeira vez em 1975, nas Edições Avante!, com segunda série em 1989 (foi depois reeditada a colecção de 1975), Desenhos da Prisão, traço sólido, são influenciados pela vida e luta dos camponeses (em que Portinari foi mestre). Na pintura a óleo sobre tela e madeira, subordinada ao mesmo ideário, Cunhal revela-se numa plasticidade que sugere a pintura mural. Terá sido, aliás, nas artes plásticas enquanto refúgio e diálogo íntimo que Álvaro Cunhal corporizou a sua totalidade. Se nos lembrarmos, por exemplo, da Pietà de Avinhão, de Charonton, é curioso ver-se (imagem da página à esquerda) uma dada transferência de um sagrado não-dito para o real-humano.

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