Vejo-lhe a fotografia num jornal italiano. Na imagem da Reuters, captada por Jean-Paul Pelissier, a festa de um golo no Mundial de Futebol Feminino: a fúria de vencer estampada no rosto, o olhar negro, poderosíssimo, o indicador em riste, em sinal de vitória. Mas é a boca, aquela boca escancarada num enorme grito, que dá força à fotografia e lhe confere um tremendo poder expressivo. Há qualquer coisa de animalesco na cena, de ancestral e selvagem, algo que nos faz lembrar os rostos distorcidos dos quadros de Bacon ou outra boca famosa, a da mulher de lunetas, ensanguentada, aos gritos mudos no Couraçado Potemkine, de Eisenstein..A autora do golo, a dona da boca, Marta Vieira da Silva, nasceu em 1986 em Dois Riachos, uma pequena localidade de 11 mil habitantes do estado brasileiro de Alagoas. Aquele não foi o seu primeiro (nem último) golo em mundiais de futebol: por seis vezes, cinco das quais consecutivas, a FIFA elegeu-a a maior futebolista do mundo. Detém o recorde do número de golos marcados em mundiais de futebol, femininos e masculinos. É a primeira pessoa, e até hoje a única, a marcar golos em cinco edições diferentes do torneio, quer considerando mulheres quer homens. Mas, talvez mais importante do que tantos triunfos e proezas, o que surpreende e fascina no grito de Marta é a história da sua vida, contada em detalhe numa extensa reportagem da revista do El País. Como sucede a muitos futebolistas, as suas origens foram humílimas, no limiar da pobreza. Marta nasceu numa casa com tecto de zinco, e começou a jogar ainda criança, descalça, com bolas de trapos. Dona Tereza, a sua mãe, descobriu com horror que, em vez de ir à escola, a filha pequena passava horas a jogar nas ruas, com meninos rapazes. Os irmãos chegaram a trancá-la no quarto para a afastar dos campos pelados onde os moços de Dois Riachos se iniciavam no desporto nacional, vivido e sofrido como tara colectiva. Um dia, conta a mãe, Marta pediu-lhe um real para comprar uma bola, dona Tereza respondeu: "Mas você é mulher!".Aí reside o maior feito de Marta Vieira da Silva, o seu mais extraordinário recorde: além de ultrapassar os obstáculos da pobreza, comuns a muitos dos seus colegas do sexo masculino, Marta teve de vencer a implacável força dos preconceitos, a ideia feita, que ainda persiste, de que o futebol é um desporto de homens e para homens, e que as mulheres que o praticam não são, enfim, mulheres como as outras: faltam-lhes atributos essenciais da feminilidade, que entendemos como uma condição mais frágil e mais delicada, sempre a carecer de protecção e amparo masculinos..Menina pobre num reino de machos, Marta fez-se a melhor do mundo, sem igual nem rival. O seu professor de ginástica, que lhe descobriu o talento, recorda que, quando era criança, "ninguém aceitava que uma menina corresse atrás de uma bola de futebol. Eles eram mais fortes, mas ainda assim ela destacava-se". Uma vez, num campeonato infantil, o treinador de uma equipa adversária ameaçou retirar os seus meninos do campo se Marta continuasse em jogo, pelo simples facto de ser rapariga. Agora tratam-na por "rainha" e as suas pegadas estão no cimento da fama do Maracanã, mas quando era mais nova, e mais frágil e insegura, quando não sabia sequer se um dia iria singrar na vocação dos seus sonhos, viravam-lhe as costas, chamavam-lhe "sapatona" e coisas piores. Até a resistência da família teve de enfrentar, a mesma família que hoje está reconciliada com ela e com as suas vitórias, e que agora vive confortavelmente graças aos proventos do seu talento ímpar. "Estão orgulhosos de mim", diz Marta dos seus irmãos, que outrora se recusavam a jogar futebol com ela. "Consegui fazer o que sempre quis fazer. Não ganho o que ganha um homem, mas a coisa melhorou. A minha família e eu temos coisas que não tínhamos há vinte anos. Agora podemos comer todos os dias!", exclama a campeã..Por muito que nos possa espantar, poucos anos antes de Marta nascer, em meados da década de 1980, o futebol feminino só há pouco tinha sido legalizado no Brasil. Se, dizem as crónicas, a primeira partida entre equipas de mulheres foi realizada em Inglaterra no longínquo ano de 1895, em meados do século XX o futebol feminino era oficialmente proibido no Brasil - e, de resto, em muitos outros países do mundo -, com o patético argumento de que podia ser causa de infertilidade. Em 1940, quando foi inaugurado o estádio modernista de Pacaembu, em São Paulo, e se celebrou para a ocasião uma partida de futebol feminino, os espectadores indignados exigiram ao Presidente Getúlio Vargas que proibisse aquela exibição de "mulheres perdidas", uma pouca-vergonha. Getúlio fez-lhes a vontade, e os seus sucessores mantiveram uma proibição oficial que, pasme-se, só foi abolida em 1979, no advento da democracia, e a legalização do futebol feminino pelo Conselho Nacional de Desportos do Brasil ocorreu apenas em 1981 (já agora, em Espanha o futebol feminino só foi reconhecido em 1980 e o primeiro jogo oficial só teve lugar em 1983, muito depois da morte de Franco, apesar de a primeira partida internacional da selecção feminina de futebol, na altura não reconhecida, ter sido realizada em 1971, em Múrcia, contra Portugal, terminando num equitativo 3-3)..Marta teve de enfrentar os preconceitos de género, mais a miséria. Só estar viva já é milagre. Nos anos 80, quando viu a luz, a mortalidade infantil em Alagoas era de 130 falecimentos por cada 1000 nascimentos, enquanto a média nacional era de 69 mortes. A partir de então, as estatísticas foram melhorando, mas, uma vez mais, o ritmo de descida da mortalidade infantil no nordeste foi muito mais lento do que nas outras regiões do país. Os homens fugiam para as cidades do sul, as mulheres que ficavam eram conhecidas como "viúvas da seca". Também Marta fugiu, logo que pôde. Mas, ao contrário das raparigas como ela, não foi para longe servir como empregada doméstica na casa dos ricos ou dos emergentes. Foi para tentar a sua sorte no futebol. A viagem de autocarro até ao Rio durou três dias e, mal chegou lá, Marta seguiu directa para o centro de treinos do Vasco da Gama, sem olhar sequer para o Corcovado ou para os areais de Copacabana. A treinadora da equipa de futebol do Vasco, Helena Pacheco, recorda que "a sua cara era a de quem tem raiva da vida" e que era essa raiva que a fazia disparar remates supersónicos, indefensáveis. Outro clássico: ao assinar o contrato, Marta fez questão de que o dinheiro do salário fosse inteirinho para a sua mãe, que a criara sozinha, sem apoios nem marido. No Rio de Janeiro, a menina pôde finalmente jogar futebol com direito a salário e sem ser alvo de insultos ou piadinhas grosseiras. Mas, após alinhar com a selecção brasileira de sub-17, ficou sem trabalho de um dia para o outro, quando o Vasco da Gama, alegando razões financeiras, decidiu encerrar a secção feminina de futebol. A sua primeira treinadora recorda que Marta ficou devastada, chorou sem parar, julgando que a sua carreira acabara antes sequer de ter começado. Valeu-lhe uma chamada de Belo Horizonte, Marta foi jogar no Santa Cruz, ficando hospedada na casa do presidente do clube. Brilharia nos oitavos-de-final do Mundial de 2003, que o Brasil perdeu para a Suécia, um país com uma longa tradição de futebol feminino, onde Marta, sem ter completado sequer 18 anos, acabou a jogar com as cores do Umeå FC. Esteve alguns anos ali e em 2008 foi para os Estados Unidos. Mais tarde, regressou a casa e alinhou fugazmente pelo Santos, voltou à Suécia em 2012, onde foi atleta do Tyresö e do Rosengard. Desde 2017, joga no Orlando Pride, da Florida, e a fama que alcançou em torneios sucessivos teve um papel crucial na afirmação do futebol feminino no Brasil, um país em que a federação hoje obriga todos os clubes da primeira divisão a terem uma secção de mulheres. A talhe de foice, e para quem não saiba: até no Vaticano foi criada recentemente uma equipa de futebol feminino, mas a sua estreia internacional, ocorrida há poucos dias, terminou mal - numa partida amigável com o Mariahilf, em Viena, as jogadoras da Santa Sé abandonaram o relvado antes mesmo de o jogo começar, incomodadas com uma inusitada e disparatada manifestação das rivais austríacas, que mal ouviram o hino do Vaticano levantaram as camisolas, expondo frases a favor do aborto e da causa LGBT. Antes disso, a recentíssima equipa feminina do Vaticano jogou a 26 de Maio a sua primeira partida contra uma equipa italiana, a Primavera de Roma, que a goleou impiedosamente por 10-0, mas sem incidentes nem controvérsias..Foi às mulheres de todo o mundo que Marta dedicou o seu golo histórico, o penálti que marcou à selecção italiana no passado mês de Junho, e que, ultrapassando o recorde do alemão Miroslav Klose, fez dela a maior marcadora de mundiais de todos os tempos, femininos e masculinos. "É uma sensação fantástica, é um golo pelas mulheres de todo o mundo, pela igualdade. Estou muito honrada que Deus me tenha escolhido para fazer isto", disse Marta Vieira da Silva no final da partida. Ronaldo felicitou-a no Instagram. Dizendo não ser feminista, Marta tem participado em diversas acções em prol dos direitos das mulheres, sendo embaixadora da boa vontade da ONU e um dos rostos mais conhecidos da campanha Go Equal, uma iniciativa para promover a igualdade de género no desporto..Marta e o seu grito de raiva conseguiram vencer no mundo inteiro, mas não na sua terra natal, num Brasil onde pouco conseguiu jogar, país em que a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos teve o desplante de afirmar, em pleno século XXI, que "menina veste rosa e menino veste azul". Talvez a ministra Damares Alves entenda que jogar futebol é coisa só para meninos, e que as mulheres que o pratiquem correm o risco de ficar inférteis. Não sabemos. Mas sabemos que Marta Vieira da Silva já aprendeu sueco e tem passaporte sueco, e é para a Suécia que tenciona ir viver quando terminar a sua extraordinária carreira, sempre a fintar o destino..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia