O grande mistério de Salazar
O livro de José António Saraiva sobre Salazar não veio suscitar a reavaliação em qualquer grau dos feitos do ditador e da obra da Ditadura. Malefícios que se manifestaram na transição para a democracia e ainda hoje se manifesta na realidade cultural e política do País.
Recolhendo e combinando laboriosamente factos, testemunhos e documentos dispersos ou desvalorizados o mérito do livro é ter libertado Salazar da abstração que era, restituindo ao leitor o homem concreto nas suas circunstâncias.
Assim, a leitura da obra suscitou-me algumas questões intrigantes, que nunca me apercebi terem sido colocadas na literatura generalizadamente redutoramente focada nas explicações politicas da acção e comportamento do ditador. Dois exemplos:
1. Com o fim da Guerra e de Hitler não pode ter deixado de se tornar claro para Salazar a inviabilidade do Portugal anacrónico e isolado que desenhara. Com a vitória dos Estados liberais ou o triunfo mundial posterior do comunismo, de que Salazar se convencera - tal como Cunhal curiosamente - esse Portugal não teria lugar no espaço do mundo no tempo que viria. Porque persistiu então o Ditador no desenho de uma realidade impossível? E tendo absoluta consciência que o regime morreria com ele, porque recusou sempre qualquer ensaio de uma qualquer transição, como em várias ocasiões Marcelo Caetano lhe... exigira?
A resposta nunca foi encontrada, nem a pergunta sequer colocada, suponho, pelos "sábios das escrituras" de ciência política.
E resposta é simples: a inteligência fria de Salazar sabia ser inútil.
País desejado de "aldeias com chafarizes para que as mulheres, esposas e mães, se encontrassem, convivesse e soubessem as noticias do dia". Um Portugal fora da História e do mundo, peça de lego com que as crianças constroem cidades imaginadas.
2. Outra interrogação bem mais desafiadora e interessante para quem conhece os factos e os documentos é a seguinte:
Como explicar o relacionamento estranhíssimo entre o Ditador e Marcello Caetano? Interrogação que JAS me disse intrigá-lo a ele e arrastar-se sem resposta convincente na mente de personalidades que trabalharam ou contactaram de perto com ambos.
Marcelo dizia tudo a Salazar. O que nem a Oposição escrevia. Nalguns momentos quase com... brutalidade (leiam-se os documentos transcritos por Saraiva no livro). Marcelo atreveu-se mesmo mais do que uma vez a tentar afastar Salazar, a "matar" Salazar, diria aproximando-me da inspiração da explicação que darei abaixo. De facto Marcello exigia-lhe (é o termo) que se apagasse na Presidência da República. Entregando-lhe a ele próprio o Governo e o futuro do Regime, sem o afirmar explicitamente, claro, mas não era necessário afirmá-lo para Salazar o entender.
Nas cartas que estão no livro, Marcello gritava a Salazar que o regime estava num impasse, a que inacção, desmotivação ou descrença do Ditador o condenava. Já nem os que o ajudaram a erguê-lo e os apoiantes acreditavam nele, etc., etc, dizia-lhe. É ler para crer. Tudo sempre com afirmações de admiração e lealdade, em palavras de grande delicadeza formal. E afastava-se, rompendo declarada e várias intempestivamente com Salazar.
E que fazia Salazar? Mandava prendê-lo ou vigiá-lo, exilava-o, colocava-o à margem do Regime, no mínimo? Não. Chamava-o. Imagine-se!
Estranhas atitudes num Ditador, que o era a ponto de tomar e fazer executar decisões da competência do Conselho de Ministros sem o reunir ou ouvir, comentava Franco Nogueira à mulher, como contou alguém que o ouviu da boca dela.
Como a troca de correspondência e as atitudes revelam, Salazar admirava Marcelo, comprazia-se com o que Marcelo era, queria-o próximo de si... mas nunca deixou que o substituísse. Salazar ouvia dele, suportava nele o que só se suporta, afinal, a um filho. Voilà!
A explicação só pode ser esta: Marcelo era o filho inventado de um homem que fizera a opção dramática entre o que foi o seu destino e o destino para que tudo nele - socialmente, culturalmente, psicologicamente, religiosamente, - o vocacionava: constituir família.
Explicação muita óbvia para um leitor de Freud, que parece haver muito poucos entre nós.
O momento dramático dessa opção foi o da ruptura com a viscondessa de Asseca, narrada no livro. Decisão traumática que necessariamente se reflectiu no comportamento do Ditador, nas peripécias da sua acção, seguramente nos seus métodos, no futuro ou no sem futuro do Regime.
3. Quando transmiti esta minha convicção a JAS, notei-lhe interesse pela tese, passando a ser ele próprio, com o espirito dedutivo que o distingue, a avançar argumentos que aparentemente a confirmavam, factos que estão no livro, mas a minha leitura não retivera. Como bem observou, só à luz desta explicação se pode compreender a ida insólita ao funeral do pai de Marcelo Caetano e o conforto que aí deu ao irmão de Marcello, muito perturbado. Nem a ida nem a atitude jogam com a prática e as exteriorizações públicas e mesmo privadas do Ditador.
Curioso e muito significativo é perceber-se que Marcello assumiu esse papel. Foi actor consciente ou inconsciente nesse drama.
Estranho também é Marcello Caetano, obtido o poder, não ter sido capaz de avançar na transição para a democracia, evitando a tragédia que vivemos. Teve meios e gente liberal brilhante para o apoiar e uma oposição democrática responsável e patriótica que não se recusaria a participar nesse processo. Mas não foi capaz. Não bastam para mim as explicações políticas dos sábios. Marcello não foi vencido, foi-se deixando vencer. Um conflito intimo, sensibilidade, porventura também uma estética, não lhe terão permitido fazer o que terá sentido como traição ao que fora o seu próprio pensamento, mais próximo, aliás, do fascismo do que o de Salazar, como tão isenta e lucidamente me lembro de ouvir Mário Soares, o anti-salazarista maior, explicar. Ou essa "incapacidade" foi sobretudo recusa de traição à ligação filial a Salazar?
Um mérito do livro de JAS, num registo porventura insuspeitado pelo autor, é revelar o homem e o Ditador como objecto de investigação da psicologia e como tema interessantíssimo para a ficção. Como estranhamente nunca foi.
Joaquim Silva Pinto, uma amizade de que me orgulho, Secretário de Estado em ministérios de Caetano e quadro superior que conheceu Salazar, a quem dei a ler este artigo, sempre inspirado e fulgurante, confirmou-me, sem o dizer, o que escrevi neste artigo: "Salazar é um personagem de tragédia grega". Freud não teria dito melhor e foi o que tentei dizer neste artigo.
Editor da Gradiva
Escreve pela norma anterior ao Acordo Ortográfico