O grande mistério da praia de Carcavelos
"O que é que quer que lhe diga? Que não houve arrastão nenhum?" Hélder Gabriel, o dono do Windsurf Café da praia de Carcavelos, ri. É o "grande mentiroso" da história, o homem que se desmultiplicou em entrevistas às TV e aos outros media, o autor das fotos que nesse dia 10 de Junho de 2005 e nos seguintes espalharam alarmando por toda a parte, com a chancela da agência Lusa (ver texto na página seguinte), a incrível novela dos 500 assaltantes negros dos bairros "problemáticos" que, de calção de banho e mochila na mão, "varreram" a praia no dia que em tempos foi "da raça" e agora é de Portugal.
"A ver se arranjo uma máquina de filmar, para não me desmentirem da próxima vez". Angolano do Lobito, regressado na leva dos "retornados" em 1975, aos seis anos, encolhe os ombros às acusações de racismos e ressentimentos. "Olhe, pode pôr aí: a minha bisavó era negra. O meu melhor amigo é negro. Joguei à bola até aos 16 anos com os putos do bairro das Marianas. Morei no Jota Pimenta, que é um dos bairros mais problemáticos... Se alguém me chama racista na minha cara, leva no focinho." Nem de propósito, Frank, um nigeriano que vende na praia, entra na esplanada de riso aberto e colares ao alto. Hélder e o resto do pessoal cumprimentam-no, tentam ajudá-lo a vender "qualquer coisa". Logo de seguida, outro negro saúda efusivamente o homem do arrastão. "Problemas por causa do que disse, das entrevistas que dei? Nada. Nunca ninguém me veio chatear com isso. Só me apareceram cá uns tipos da Judiciária de Lisboa, logo a seguir, a fazer umas perguntas. E mais nada."
"A polícia foi cobarde"
À verdade oficial do arrastão que não foi, Gabriel faz caretas: "São uns cobardes. A polícia desmentiu porque é cobarde." Ao lado, alguém, que prefere não ser identificado, ajunta: "Meteram-se outros interesses. Económicos, turísticos... Acharam que isto era mau para a imagem do país..." Quem assim fala, no entanto, também se desmente. Numa peça publicada a 12 de Junho no DN, uma citação refere que naquele 10 de Junho os tais grupos de rapazes negros que "invadiram" a praia passaram à sua frente com facas e pit bulls. "Eu? Nunca disse isso. Acha que se as pessoas trazem facas, as põem à vista, para toda a gente ver? Aí está um exemplo de mau jornalismo, daquele de que se queixa o Carrilho." Também Hélder abjura. Às TV, falou no dia 10 e nos seguintes sobre "tiros" que não seriam da polícia. Que teriam, talvez, dado "o sinal" para o "arrastão". Questionado sobre o assunto, indigna-se. "Isso é uma ganda tanga. São mentiras infundadas que se inventam... As pessoas querem é notícias bombásticas."
A duzentos metros, um outro concessionário da praia alinha pela tese, num saco onde também cabe Hélder Gabriel. "Ele esteve mal porque falou e não soube falar. Estávamos todos de cabeça quente por causa das obras da praia, que nunca mais acabam... Agora bandos a roubar como disseram? Não, isso é pura mentira. Foi ridículo. Claro que há roubos, mas há roubos todo o ano em todas as praias. Vieram aí três polícias e não sei porquê chamaram mais. Um arrastão eu já vi, no Brasil. É 40 ou 50 pessoas a roubar. Isso é que é um arrastão."
"Ter-se-ão verificado roubos"
30 a 40 pessoas a roubar: é exactamente isso que o relatório final da PSP diz que aconteceu naquele dia. Um "relatório" que, utilizando uma linguagem que coloca em dúvida tudo o que relata - "ter-se-ão verificado roubos"; "as circunstâncias terão sido aproveitadas para (...) um grupo de cerca de 30 indivíduos correr pela praia e tentar apoderar-se dos objectos deixados pelos banhistas"; "consta que alguns indivíduos (...) agrediram um cidadão brasileiro e um cidadão de leste com o intuito de os roubar" -, logra a proeza de não dizer quantas chamadas de queixa (a primeira das quais, segundo um relatório anterior, teve lugar ao meio dia) foram recebidas pela polícia, a que horas e alegando o quê, quantos polícias patrulhavam a praia e quantos elementos do corpo de intervenção ali se deslocaram a pedido dos primeiros (e porquê e para quê).
A fábula dos "cerca de 500", sustentada nas primeiras informações policiais, terá até sido, como o comandante da PSP de Lisboa, Oliveira Pereira, afirmou em entrevista à jornalista Diana Andringa, baseada em informações dadas por jornalistas. Uma pescadinha de rabo na boca que tropeça no facto de terem sido polícias que estavam na praia que pediram reforços - e que reforços. Afinal, como diz o dono de um outro bar de praia, que nesse dia só viu "polícias a correr", "as entidades que estiveram no terreno é que têm condições para avaliar com credibilidade o que se passou". O resto, diz, é "um pouco discutir o sexo dos anjos: o que é um arrastão, o que não é, quantas pessoas fazem um arrastão..."