O grande frente-a-frente SIC/Proteção de Menores
"Este programa é um documentário, só se ultrapassa a dor superando-a. Estamos convictas de que este programa é benéfico. (...) É um retrato do real, com atores não era verdade. Há uma força nisto que é o amor, estou aqui a defender os pais. (...) A verdade das famílias é esta e a nós só nos interessa isso."
Representando a direção de programação da SIC, Júlia Pinheiro descreveu assim Supernanny. O recordista de audiências do domingo passado, que tem suscitado reações duríssimas dos representantes da proteção de menores e de instituições ligadas aos direitos das crianças como o Instituto de Apoio à Criança, a Unicef Portugal e, ontem mesmo, da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, é pois para a animadora das manhãs a SIC um serviço à comunidade e à felicidade das famílias. E remete os motivos da contestação para "o politicamente correto" e o "medo": "Os pais foram devidamente alertados, visionaram os programas passados noutros países. Estávamos à espera de uma reação que foi muito amplificada por aquilo que é consensualmente dito como o politicamente correto. Aquilo que nos desafia, que nos mostra uma realidade que não queremos ver mas sabemos que está lá abala-nos e reagimos com medo. Mas neste momento esse medo já passou e as pessoas já perceberam que há aqui uma intenção puramente social, pedagógica, e que o nosso único objetivo é dar ferramentas para que os pais possam desempenhar melhor o seu papel, contribuir para a harmonia familiar. O programa veio abrir um debate que não está a ser feito."
"As crianças têm inteligência."
Ao lado de Júlia Pinheiro estava Cristina Valente, apresentada como psicóloga, e que pouco interveio; em frente, Rosário Farmhouse, presidente da Comissão Nacional de Promoção de Direitos e Proteção de Crianças e Jovens, e Dulce Rocha, presidente da direção do Instituto de Apoio à Criança. No centro, como pivô, Conceição Lino, jornalista. Entremeado com vox populi e entrevistas com mães participantes no programa (que o louvaram) o debate durou cerca de uma hora. Mas aquilo que era suposto ser uma mesa redonda informativa sobre o que está em causa no formato transformou-se rapidamente num confronto em que a própria pivô assumiu a defesa do programa, dando como certo que a intervenção da "supernanny" tinha serenado as crianças, questionando repetidamente "como se pode ter a certeza de que estas crianças estão a ser prejudicadas com esta exposição", comentando a existência de "uma série de questões postas a correr que não correspondem à verdade" -- sem no entanto as identificar e esclarecer -- e chegando a insinuar que a intervenção da CNPDPCJ, "amplificando a situação", pode ter prejudicado os menores: "Quando se fala de bullying é preciso saber quem o pratica e o que está a acontecer para que isso possa surgir."
Sem nunca questionar Júlia Pinheiro sobre matérias como os critérios de escolha das famílias, que tipo de contrato assinam, se existe pagamento e de quanto, como vê a desistência do patrocinador logo após o primeiro episódio (assunto nunca abordado) e por que motivo o canal não respondeu positivamente ao pedido da Comissão de Proteção de Crianças e Menores de Loures e dos pais da menina retratada no primeiro episódio no sentido da eliminação das imagens da filha, a jornalista nunca fez à representante da direção de programas a pergunta inversa àquela que instou Rosário Farmhouse e Dulce Rocha a responder: como pode a SIC ter a certeza de que a exposição não prejudica as crianças? E chegou mesmo a dizer: "As crianças têm inteligência, acompanharam a situação, foi-lhes explicado que ia lá a supernanny. Elas próprias, de acordo com o que eu soube por parte daqueles pais e daquelas mães, foram a pouco e pouco percebendo o efeito imediato que aquela intervenção que lhes custou foi tendo. Isso não tem valor? (...) Qual o valor que tem as relações familiares que vimos terem serenado? Isso não conta nada?"
"Cabe ao MP fazer a sua parte"
"Deus queira que seja assim tão eficaz que ao fim de poucos dias as coisas mudem radicalmente", pontificou Rosário Farmhouse, lembrando que a educação é um processo longo e difícil. E explicou ter o organismo a que preside agido ainda antes do primeiro episódio de Supernanny ir para o ar, perante os vídeos promocionais e a queixa de um familiar da menina. "Entrámos em contacto com a SIC para a sensibilizar para a temática, para o facto de estar a ir contra os direitos da criança. Mandámos um documento para a Entidade Reguladora da Comunicação Social e avisámos a Comissão de Proteção local [de Loures]. Os pais mostraram-se arrependidos e deram consentimento para se encontrar forma de proteger a criança." Porque uma coisa, explica, é ver episódios com outras famílias, de programas estrangeiros; outra é assistir a um com as suas crianças: "Não tinham ideia do filho naquela figura."
A CNPDPCJ recebeu também, informou, uma queixa de um familiar de outra criança -- um avô que estava convicto de que o neto era o protagonista do segundo episódio. Tal não se confirmaria: no segundo episódio surgiu uma família com dois filhos, cuja mãe, em entrevista passada durante o debate, disse que voltaria a fazer o mesmo e não estava nada arrependida. Júlia Pinheiro, que não esclareceu o que vai acontecer às filmagens do menino que o avô quis proteger, perguntou: "Os pais não são os representantes dos filhos?"
Farmhouse explicou que qualquer pessoa tem o dever de sinalizar se crê que direitos de um menor estão em risco e Dulce Rocha frisou que "os direitos dos pais não são ilimitados, absolutos e quando se trata de um direito muito pessoal da criança [como é o caso do direito à privacidade] esse direito é indisponível, na minha opinião." E por sua vez questionou Júlia Pinheiro: "E a SIC não se sente incomodada por uma série de instituições especializadas no apoio a crianças, que estudam, que se preocupam, dizerem o que dizem do programa?"
Sublinhando que "não estamos a culpar os pais, estamos a alertar para que este tipo de programas não protege os menores", Rosário Farmhouse admitiu até que a intervenção da especialista do programa pode ser positiva mas "não com aquela exposição da criança. (...) Percebi e senti o desespero daquelas crianças nalguns momentos de autêntica devassa da sua intimidade." E, alertando para que a situação dos pais que doravante autorizem participação dos filhos é diferente da dos primeiros, porque "uma coisa era até aqui que não se conhecia o formato, outra é agora", remete para a justiça: "Caberá ao MP fazer a sua parte."
"Oportunidades para evangelizar"
À pergunta repetida por Conceição Lino em várias formulações ao longo do debate "Como se avaliam os danos que as pessoas sofrem?"; "Como se sabe que a exposição afeta a dignidade das crianças e está a afetar neste momento?" a psicóloga Cristina Valente, que pouco falou, respondeu ao lado: "Em primeiro lugar a intenção da SIC é positiva. Se há alguma coisa aqui que possa não correr bem, nomeadamente a criança ir para a escola e sofrer bullying, por exemplo, qualquer desafio que o pai enfrenta em relação à criança é uma oportunidade para evangelizá-la e ter uma postura pedagógica. (...) O que me interessa é educação emocional nas escolas, educação alimentar, educação para o sono e se estas pessoas tão interessadas no supremo interesse da criança por causa deste programa, se virem pais no centro comercial a bater num filho vão lá dizer que é crime. Não posso nunca dizer nem nenhum ser humano pode dizer se a criança tal daqui a 20 anos se suicida."
A ideia de que existe uma lesão do direito das crianças pela mera exposição, independentemente da forma como estas reajam agora ou superem a situação no futuro -- a lesão do valor fundamental que o Tribunal Constitucional alemão definiu como o de "ser deixado em paz" -- não pareceu impressionar nem a psicóloga nem Júlia Pinheiro nem terá sido convenientemente explicitada para os espectadores. Até porque, como frisou a representante da direção de programas da SIC, "a sociedade atual expõe as crianças continuamente. Têm noção da profusão de imagens de crianças que estão a ser divulgadas, usadas, por exemplo no Instagram, até para fins comerciais e afins?" Fins comerciais, tão distintos dos do Supernanny, que, recorde-se, Júlia Pinheiro define como "puramente sociais, pedagógicos".