"O grande erro foi não autorizarem público nos estádios desde que a pandemia melhorou"
O Governo quer saber como foram articulados os festejos do título de campeão de futebol entre a Câmara, a PSP e o Sporting Mandou, ainda, instaurar um inquérito à atuação da PSP, que ontem se limitou a descrever o que aconteceu. A autarquia alterou o modelo de homenagem à equipa, que será agora sem adeptos, e diz que a sua intervenção foi impedir a concentração no Marquês de Pombal, objetivo que entende ter cumprido.
O clube, esse, não comenta. Ouvido pelo DN, Leonel Carvalho, ex-secretário-geral do Gabinete de Coordenação e Segurança, defende que o maior erro é não terem autorizado já a presença de público nos estádios.
"Houve uma grande desorganização, mas era muito difícil qualquer tipo de organização", começa por dizer o tenente-general que coordenou a segurança do Euro 2004. E explica: " As bases dadas à polícia para a intervenção no terreno foram completamente falíveis. Estive na segurança muitos anos, admito que esta não foi muito bem planeada, mas também não vejo que a polícia pudesse fazer muito melhor, a não ser que entrasse com um dispositivo de força total e absoluta, que não fazia sentido quando era uma manifestação de pessoas felizes, e teria que ter autorização do Ministério da Administração Interna. Não fazia sentido pôr a cidade em estado de sítio".
Leonel Carvalho entende que a presença de público no estádio poderia atenuar os confrontos durante os festejos. "O grande erro em termos de prevenção é não ser autorizada a entrada de pessoas no estádio desde que melhorou muito a situação da covid. Com os adeptos no estádio, era completamente diferente. Há um planeamento à distância, só podem ser vendidos X bilhetes, suponhamos que são 15 % - 7500 pessoas que é o que está autorizado em Fátima [12 e 13 de maio] -, fica muito espaço e distância entre as pessoas. Entram no estádio por várias portas, com horários diferentes e de acordo com a cor do bilhete, usam a máscara. O acesso seria mais longe e com vários controlos. Decidiram que não iriam autorizar público, apesar de Portugal ser o país europeu com menos risco de novos casos, é um disparate. Não faz sentido porque comprometem tudo o resto", justifica.
O comunicado da PSP indica que, pelas 21:18, junto ao Estádio de Alvalade - onde ainda se jogava - "verificaram-se comportamentos desordeiros e hostis por parte de alguns adeptos relativamente aos polícias que se encontravam de serviço, obrigando ao uso da força, incluindo disparos com projéteis menos letais, para fazer cessar aquelas condutas perigosas".
A situação repetiu-se cinco horas depois, já no Marquês de Pombal, após o autocarro ter iniciado o desfile com os jogadores e os dirigentes do Sporting Clube de Portugal (SCP), às 02:00. Ocorreram "reiterados comportamentos hostis e desordeiros por parte de alguns adeptos (...) tendo sido arremessados objetos perigosos na direção da força policial, incluindo garrafas de vidro, pedras e artefactos pirotécnicos, obrigando ao uso da força, incluindo disparos com projéteis menos letais, para fazer cessar aquelas condutas perigosas".
A polícia, em conferência de imprensa, só às 17:00 de terça-feira anunciou as regras para a reação ao jogo. Havia já centenas de pessoas concentradas junto ao estádio, sem distanciamento e muitos sem máscara. Assistiam ao jogo através de um ecrã instalado pela claque leonina, que terá sido autorizado, mas sem que a assistência respeitasse as indicações da Direção-Geral de Saúde. A PSP informou, então, que o autocarro iria iniciar o desfile por volta das 00:00. Mas, afinal, saiu de Alvalade duas horas depois. Leonel Carvalho entende que não foi isso que potenciou os ataques na via pública, admitindo, até, que fosse por indicação da força policial na tentativa de desmobilizar as pessoas ao longo da noite.
O desfile do autocarro terminou pelas 04:00 no Marquês de Pombal. A PSP apreendeu, a nível nacional, 63 artefactos pirotécnicos, identificou 30 pessoas por motivos diversos e deteve três cidadãos, obrigados a apresentarem-se posteriormente perante o juiz.
Ontem, no debate da Assembleia da República, António Costa foi questionado pelo deputado do CDS Temo Correia sobre o tema. O primeiro-ministro anunciou que o ministro da Administração Interna (MAI), Eduardo Cabrita, pediu à Inspeção-geral da Administração Interna (IGAI) a abertura de um inquérito à atuação da PSP.
"Queremos saber como foram articulados os festejos, entre a Câmara, a PSP e o Sporting Clube de Portugal. Solicitámos ainda um inquérito à atuação da PSP e à IGAI", disse, recusando-se a "atirar pedras". Aproveitou para lembrar que "recentemente no Reino Unido se viveram situações muito tensas".
Leonel Carvalho recorda a preparação da segurança no Euro 2004, um acontecimemento internacional e com a ameaça terrorista, mas onde se sabia quantas pessoas iam estar nos estádios. Tudo começou a ser preparado um ano e meio antes, face à situação excecional. Mas há elementos que devem ser tidos em conta em quaisquer circunstâncias: "avaliação dos riscos e as ameaças e a forma de responder. Prevenir e, se a prevenção falhar, como atuar". Na terça-feira, diz, "não se sabia se o Sporting era ou não campeão, como iriam reagir os adeptos, que idade tinham, etc. É uma situação não expectável em termos de comportamentos. No terreno, a polícia atuou relativamente bem com os meios que tinha, aí pode-se pôr em causa se os meios seriam suficientes, mas se fosse para afastar as pessoas com mais força poderia provocar consequências piores", diz Leonel Carvalho. A acrescenta que o cenário poderia ser pior se a decisão do título ficasse para o próximo jogo, entre o Benfica e o Sporting, dada a rivalidade entre as claques.
A Câmara Municipal de Lisboa lamentou os acontecimentos da noite de terça-feira e acabou por mudar os moldes com que vai receber a equipa a 20 de maio, "esse sim, um evento organizado pela autarquia", sublinha. "Ao contrário do que é tradição, não haverá evento público. Não será permitida a presença de adeptos na Praça do Município, bem como nas praças e ruas adjacentes, estando a cerimónia reservada a convidados e atletas do Sporting Clube de Portugal (em especial das escolas do Sporting), bem como aos órgãos de comunicação social".
A autarquia liderada por Fernando Medina informa que houve várias reuniões preparatórias para reagir aos festejos do campeonato. "Apesar do contexto de pandemia, essa aglomeração espontânea de pessoas era muito provável e colocava particulares desafios ao clube campeão e às autoridades de saúde e forças de segurança. Refira-se que não vigora hoje no nosso país qualquer limitação horária ou outra à circulação das pessoas em espaço público. A preocupação foi diminuir o previsível afluxo de pessoas a um ponto único: a praça do Marquês de Pombal", o que a autarquia diz ter conseguido.
Contactado pelo DN, o Sporting não quis comentar os acontecimentos. Lembra que o clube contactou todas as entidades envolvidas (Liga Portugal, CML, PSP) "a tempo e horas" e que o plano de festas foi autorizado por todos.
Menos de 24 horas depois de o Sporting confirmar a conquista do campeonato nacional, a Liga de Clubes anunciou que os jogos da 34.ª e última jornada vão poder contar com público nas bancadas, embora limitado a 10% da lotação dos estádios. Além disso, só poderão assistir aos jogos adeptos da equipa visitada e que apresentem teste negativo à covid-19. Os do Sporting (pelo menos alguns) terão assim a oportunidade de assistir em Alvalade à despedida da equipa de Rúben Amorim do campeonato, frente ao Marítimo. Os jogos da última jornada ainda não têm horário definido, mas estão marcados para 18 e 19 de maio. "A decisão foi tomada depois de várias reuniões da Liga Portuguesa de Futebol Profissional [LPFP] e da Federação Portuguesa de Futebol [FPF] com as autoridades de saúde pública e o governo, e que se intensificaram nas últimas semanas. O plano apresentado pelas entidades desportivas contou com a colaboração e a validação da DGS", disse a Liga em comunicado, acrescentando que "os jogos são eventos-teste que podem viabilizar o regresso de público aos estádios".