O génio intolerável
O saxofonista Charlie Parker - Bird, para toda a gente -, um dos quatro maiores nomes da história do jazz, teria completado 100 anos no dia 29 último (os outros são Louis Armstrong e Duke Ellington, por aclamação universal, e um terceiro à escolha do leitor). Se é impossível avaliar as alturas a que Parker atingiria musicalmente se não tivesse morrido aos 34 anos, o impressionante é que, para os amigos, a sua morte não tivesse acontecido ainda mais cedo.
Ele era um génio, todos concordavam, mas, nos últimos tempos, a ser mantido à distância. A droga e o álcool tinham-no tornado desleal, imprevisível, violento, insuportável - autor de proezas inacreditáveis, como aparecer embriagado e nu num saguão de hotel em Los Angeles ou ludibriar filhos de colegas e tomar-lhes o dinheiro para comprar heroína -, alguém a ser evitado até pelos músicos e agentes que lhe deviam tudo. No fim, poucos aceitavam tocar ou gravar com ele, e não o queriam nem mesmo na boate que ele batizara, a Birdland, na Rua 52. Parker esteve internado em hospitais psiquiátricos, mas pelo que se supunha ser problemas mentais. Ao que se sabe, nunca foi tratado de dependência química, que era nitidamente o problema.
No começo havia a ideia de que ele devia à heroína as suas revolucionárias improvisações, com progressões harmónicas nunca ouvidas e numa velocidade que poucos podiam acompanhar. Hoje sabe-se que, ao contrário, Charlie Parker foi um génio apesar da droga. Basta somar as horas que dedicava a ela, tanto para comprá-la dos traficantes quanto para se esconder deles por dívidas não pagas - a um desses cedeu em definitivo os seus direitos por várias gravações, a fim de que ele lhe garantisse o suprimento de heroína (o que o sujeito fez, mas só por algum tempo). E havia a medida judicial que, por porte de droga, o impediu por anos de tocar nas casas noturnas de Nova Iorque - medida quase fatal para um jazzista, como Billie Holiday, Thelonious Monk e outros, que sofreram a mesma pena, souberam muito bem. Todas essas ocorrências afastaram-no do instrumento, alienaram-no do meio musical, atrasaram a sua arte.
Sem falar em suas inúmeras crises de abstinência por falta da droga, marcadas por delírios e alucinações. Na Califórnia, onde aceitou passar uma temporada a trabalho nos anos 1940, Bird não contava que, ali, no meio do deserto, a oferta de heroína não fosse como em Nova Iorque, onde conhecia todos os traficantes. Em Los Angeles, ele não conhecia ninguém e ainda não era famoso o suficiente para que eles o conhecessem. Só que o organismo do dependente não quer saber de explicações - não tolera o corte no fornecimento e, sem a droga, reage como um animal encurralado. Historicamente, muitos jazzistas passaram por isso em quartos de hotel ou becos de cidades estranhas e, por descaso ou ignorância dos autores, os livros a seu respeito raramente contam essas histórias. Exceções são Wishing on the Moon, biografia de Billie Holiday por Donald Clarke, High Times, Hard Times, autobiografia de Anita O'Day, e o mais que pungente Straight Life, memórias do também saxofonista Art Pepper, em coautoria com a sua mulher, Laurie. Mas em nenhum deles a devastação física provocada pela droga se comparou à de Parker.
Todos já leram que, como ele não trazia documentos, o médico que atestou a sua morte, num apartamento de hotel em Nova Iorque, em 1955, teve de calcular a sua idade e arriscou algo entre 50 e 60 anos. Mas quem observar as suas fotos de qualquer época sempre lhe dará o dobro da idade real. Bird nunca foi "jovem". Diz-se que, aos 16 anos, em Kansas City, já era dependente de heroína e aparentava 38. A sua música, sim, apesar de espantosamente madura, rejuvenesceu o jazz em décadas.
Quando se afirma que ele foi aclamado como um dos maiores nomes do jazz, isto não inclui os historiadores e críticos mais conservadores, liderados pelo francês Hugues Panassié. Nos anos 1940, Panassié levou jazzófilos de toda a parte a não considerar Bird um músico "de jazz", mas de bebop. Para ele, uma coisa não tinha que ver com a outra - jazz era Heebie Jeebies, de 1925, com Armstrong, não Salt Peanuts, de 1945, com Bird e Dizzy Gillespie. Outra coisa que o revoltava era ver que, por causa de Bird, o sax-alto estava aposentando o clarinete, indispensável ao jazz tradicional. De facto, depois de Parker, nunca mais surgiram clarinetistas como Buster Bailey, Jimmie Noone e Sidney Bechet, ou Johnny Dodds, Barney Bigard e Pee Wee Russel, ou Benny Goodman, Artie Shaw e Woody Herman. O último de quem se tomou algum conhecimento foi Buddy de Franco. A partir de Bird, quase todos os revolucionários seriam saxofonistas.
Mas, ao contrário de seus pares em grandeza, como Louis e Duke, Charlie Parker tornou-se mais admirado do que amado. As suas gravações dos anos 1940, com ou sem Dizzy, como Ornithology, Scrapple from the Apple, Hot House, Anthropology, Yardbird Suite e tantas mais, são vertiginosas, mas soam agora como rascunhos do que ele inevitavelmente teria produzido no futuro - se tivesse havido esse futuro. Já as muitas faixas em que foi acompanhado por orquestras de cordas, concebidas por Norman Granz, eram e continuam a ser adoráveis à primeira audição - experimente escutar essas interpretações de April in Paris, Easy to Love, Autumn in New York. Na verdade, foram tão bem-sucedidas comercialmente que, ainda hoje, servem inclusive como música de fundo em elevadores.
Os jazzófilos mais radicais desprezam esses discos. Os ouvintes normais, como eu, deixam que o elevador continue a subir e a descer e ignoram a porta que abre e que fecha, até que Bird pare de tocar.
Jornalista e escritor brasileiro