O génio esquisito de George Miller
O homem que fez nome com a série de filmes Mad Max, estando ao mesmo tempo associado ao clássico de família Um Porquinho Chamado Babe (que produziu e do qual realizou a sequela), assina agora um conto de fantasia para adultos que nem por isso apela à sensibilidade mais adulta. Três Mil Anos de Desejo é um projeto acalentado por George Miller desde os anos 1990, quando leu o conto de A.S. Byatt em que o filme se inspira. Está por isso na sua origem uma paixão pessoal e um sentido de honestidade que não devem simplesmente ser ignorados - este é um filme contente com a sua qualidade fora de moda e apostado numa gentileza crua que tanto intriga como comove ou, a espaços, provoca um sorriso indulgente. Miller chegou a dizer que era o seu "anti-Mad Max", mas não deixam de existir nele elementos indissociáveis do criador dessa franchise.
Tilda Swinton, na sua cabal adaptação a qualquer universo, é aqui uma académica, professora de narratologia, que ao participar numa conferência literária em Istambul começa a ter visões de figuras que parecem ter saltado das páginas de um romance. Porém, é só quando se encontra sozinha no quarto de hotel (o mesmo, segundo se diz, onde Agatha Christie escreveu Um Crime no Expresso do Oriente), que experiencia o absoluto esbatimento da fronteira entre realidade e ficção: do interior de um frasco por ela adquirido numa loja de antiguidades sai um génio gigante disposto a conceder-lhe os três desejos da praxe. Génio esse, interpretado com charme melancólico por Idris Elba, que acaba por conseguir ajustar o seu volume físico à forma humana, tornando-se uma espécie de Xerazade masculino que se põe a narrar as suas desventuras milenares à mulher moderna, enquanto esta, mantendo uma desconfiança saudável (e própria da sua área de estudo), também se entrega a alguma revelação sobre a sua vida solitária. Embora não consiga pensar num único desejo para pedir.
Assim, sentados na cama do quarto, vestidos com roupões de banho, os dois compõem o eixo da história, sendo que os acontecimentos de Três Mil Anos de Desejo têm lugar sobretudo fora daquele espaço, isto é, em flashbacks do génio que dão conta da sua pouca sorte entre rainhas de Sabá, mulheres escravizadas no Império Otomano e outras esposas infelizes. Digamos que Miller está interessado no conceito das "histórias dentro da história" e usa-o como forma de celebrar o ato puro da narração, para isso usando e abusando de efeitos especiais...
É neste aspeto que o filme nos divide. Por um lado, a imperfeição de Três Mil Anos de Desejo, essa estranheza dos cenários gerados por computador, com aparência algo datada, é demasiado óbvia para descartar. Por outro, ela constitui por si só uma graça anacrónica que sublinha a sinceridade do realizador. Este é sem dúvida o tipo de projeto que o septuagenário Miller realizaria só pelo prazer e gosto quase infantil de concentrar um imaginário muito próprio, com tendência para o maximalismo e excentricidade - é por essa razão que, apesar do contexto íntimo do quarto onde se encontram a mulher estudiosa e o génio, o filme precisa de uma arena maior para dar azo ao talento esquisito de Miller.
Não há melhor representação desse desejo de maximalismo do que o dito génio que irrompe do frasco com uma estatura desmesurada, mal conseguindo mover-se no aposento do hotel. O mesmo acontece com o realizador, que precisa de espaço para explorar o excesso através de corpos volumosos, mitos e metamorfoses do arco-da-velha, como aquela em que a cabeça de um homem, ao cair, se transforma numa aranha horripilante, depois desfazendo-se num mar de aranhas mais pequenas... É difícil nomear filmes de suposta natureza intimista onde se consiga encaixar um momento tão estrambólico como este. Mas se Miller o consegue é porque há um registo solidificado em títulos como As Bruxas de Eastwick (1987), Babe: Um Porquinho na Cidade (1998) ou mesmo os Mad Max. Uma marca de autor que não interfere por aí além com a química de Swinton e Elba, cuja nota de doçura é reforçada na última parte do filme.
Três Mil Anos de Desejo é daqueles objetos falhados que sobrevivem porque são estranhos, acarinham essa estranheza e recusam corresponder a um modelo higiénico de cinema comercial e familiar. Em todo o seu pot-pourri estético e conceptual há detalhes que o salvam da irrelevância e que prolongam um fio de encantamento. Pensamos nele à imagem do próprio frasco antigo que Tilda Swinton compra no bazar turco, contendo o génio: uma peça deformada, obsoleta e cheia de pó, esquecida no meio de outras antiguidades, que neste caso liberta a magia das produções dos anos 1990, trabalhada com a preguiça digital do novo milénio.
George Miller não é senhor de abordagens adultas, eis o ponto assente. Mas esta não deixa de ser a sua versão de fantasia da meia-idade, com dois atores que fazem valer a sua presença para além dos pozinhos de CGI. Vamos ver como corre a próxima aventura do realizador, já em rodagem: Furiosa, previsto para 2024, é a história de origem da guerreira de Mad Max: Estrada da Fúria, desta vez interpretada por Anya Taylor-Joy.
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