O gato que veio do futuro

Depois de ter sido considerado pelo governo nipónico como o embaixador do anime do Japão, abriu agora, nos arredores de Tóquio, um museu dedicado a Doraemon, o gato robô mais querido pelas crianças de todo o mundo.
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«As crianças são crianças, não importa onde elas vivem.» Quem o disse foi Masako Fujimoto, viúva do co-criador Hiroshi Fujimoto, há poucos dias, quando o museu dedicado ao gato mais popular do mundo abriu nos arredores da capital japonesa. Poderia ter também acrescentado "quando" à frase (referindo assim a época em que as crianças de que fala vivem) não o fosse o simples facto de Doraemon ser um gato robô que consegue, para além de muitas outras coisas... viajar no tempo.

Este foi o mote para Hiroshi Fujimoto. Em 1969 tropeçou acidentalmente num brinquedo de uma das suas três filhas, ouviu uma luta entre gatos e desejou que houvesse uma máquina que gerasse por si um novo manga (banda desenhada japonesa). De repente, parece ter-se feito luz ao juntar a forma do brinquedo, o distante miar que escutara e o desejo de criar uma máquina: porque não a história de um gato robô com uma bolsa de onde pudesse retirar todo o tipo de aparelhos que ajudassem a solucionar os problemas?

A ideia surpreendeu o melhor amigo Motoo Abiko e, juntos no objectivo de divulgarem a cultura japonesa, imaginaram uma história de fundo e deram uma personalidade a Doraemon (o seu próprio nome, que mistura os silabários katakana e iragana, provém de um trocadilho e do facto de adorar dorayakis, pequenas panquecas japonesas).

Como revelam os primeiros desenhos, originalmente publicados simultaneamente em seis diferentes revistas para crianças em Dezembro de 1969, Doraemon surge pela primeira vez ao protagonista da série quando, subitamente, invade o seu quarto através da gaveta da sua secretária. Apavorado com a aparição, Nobita, jovem e desastrado rapaz do século XX que vive com os pais em Tóquio, desata a gritar: "Quem és tu? De onde vieste? Porque é que...? Como é que...?", ao que Doraemon simplesmente lhe responde: "Não perguntes tanta coisa ao mesmo tempo! Vim salvar-te de um destino horrível."

As aventuras com Nobita

Assim começavam as aventuras do robô enviado do século XXII pelo neto de Nobita, ao lado dos seus amigos Shizuka (de quem Nobita é apaixonado), Gigante e Suneo, que não raras vezes fazem a vida negra ao protagonista.

O sucesso foi de tal maneira imediato que em 1973 houve uma primeira tentativa de adaptar o manga para televisão. Apesar dos 53 episódios lançados, o programa foi parco em audiências, alvo de críticas por parte dos dois criadores originais (devido à má qualidade dos desenhos) e, como consequência, cancelado meio ano após a sua estreia.

A segunda tentativa foi a que celebrizou, em definitivo, a imagem de Doraemon como um verdadeiro ícone asiático. Os desenhos animados foram pela primeira vez lançados no dia 2 de Abril de 1979, e até meados de Março de 2005 estrearam nada mais, nada menos do que... 1787 episódios, cada um com a duração média de sete a dez minutos. Geralmente, cada um debruçava-se sobre um problema de Nobita cuja resolução era encontrada numa bolsa da quarta dimensão onde Doraemon armazenava vários aparelhos do futuro.

Com um humor muito próprio e situações que, contextualizadas na sociedade japonesa, reproduziam o quotidiano de um estudante preguiçoso mas amável, Doraemon subsistiu pela forma muito particular de terminar cada episódio com lições de vida, sem que tal significasse necessariamente ser excessivamente moralista. Para além do mais, no universo deste anime (situado nos anos 1980), as personagens são dotadas de uma personalidade que mistura livremente tanto qualidades como defeitos (tal e qual a realidade) e de duas características que atravessaram as várias gerações dos fãs de Doraemon: a curiosidade para saber mais e o desejo de concretizar os seus desejos (o genérico inicial inclui a frase "Oxalá os meus sonhos se tornassem realidade").

Viagens no tempo

Era por isso que, de um modo ao mesmo tempo divertido, subtil e pedagógico, as crianças viajavam facilmente, ao lado da trupe liderada pelo gato robô, da savana africana à Antiguidade Clássica. As dez curtas-metragens e 31 longas-metragens baseadas na série televisiva (incluindo Doraemon e os Piratas dos Mares do Sul, Doraemon e o Império Maia e Doraemon e o Expresso do Tempo, os três editados em Portugal) acabam por espelhar o imaginário de ficção científica dos desenhos animados.

A abordagem simples e criativa da ficção científica provocava, para além de curiosidade no público infanto-juvenil, um questionar que podia mostrar-se, em muitos momentos, de carácter iminentemente filosófico. Em muitos dos seus episódios (em filme ou em televisão), reflectiam as questões seculares sobre o chamado paradoxo temporal (fenómeno provocado pela acção de um ente do futuro sobre o seu passado), o determinismo, o universo e a relação homem/máquina.

Após ter sido traduzida em mais de trinta línguas (incluindo uma versão castelhana popularizada pelo Canal Panda e, actualmente, pelo Panda Biggs, e uma versão portuguesa exibida pela RTP), a série terminou em 2005, dando lugar a uma segunda versão que, presentemente, se encontra na sétima temporada. As crianças de todo o mundo puderam assistir, ao lançamento de 63 videojogos com Doraemon para várias plataformas e a um musical que estreou em Tóquio em 2008.

Doraemon prepara-se para comemorar o seu 43.º aniversário mas ficamos, depois da abertura de um museu dedicado a Hiroshi Fujimoto no Japão, com a certeza de que permanece vivo dentro da criança que também somos.

As personagens

Doraemon

Fabricado no ano 2112, o gato robô azul é enviado para o século XX pelo neto de Nobita, através de uma máquina do tempo, de maneira a ajudar o avô Nobita nos seus problemas. Tem medo de ratos (que lhe roeram as orelhas), adora comer (sobretudo dorayakis) e tem uma bolsa de onde pode tirar aparelhos do futuro, como a porta mágica ou o gorrocoptero. Tem uma irmã mais nova chamada Dorami, que é amarela.

Nobita Nobi

Perfeita antítese do amigo Doraemon (a quem pede sempre auxílio), Nobita é um rapaz profundamente irresponsável e trapalhão (sendo sempre molestado ora por um cão ora pelos amigos). Apaixonado por Shizuka (com quem sabe que se casará no futuro), gosta de dormir e ler bandas-desenhadas, odeia estudar (tira zeros em todos os testes, o que enfurece o professor e a sua mãe rígida) e está sempre a chorar.

Shizuka Minamoto

A única rapariga protagonista da série animada é uma pessoa cujo amor é disputado por Nobita, que frequentemente a deixa zangada, e por Dekisugi, o aluno mais inteligente e talentoso da escola. Estudiosa e simpática, Shizuka é porventura a personagem mais racional, ainda que tenha uma estranha obsessão por banhos. Estranhamente, Nobita interrompe-a sempre, através da porta mágica, quando está na banheira.

Takeshi "Gigante" Gouda

O Gigante, nome que os amigos utilizam para o denominar, é o bully do grupo, maltratando e roubando as pessoas com a sua grande força.

Suneo Honekawa

Ao contrário de Gigante, Suneo é filho único e é o elemento mais rico do grupo. O dinheiro da sua família motiva a sua personalidade altiva e presunçosa, exibindo não raras vezes os seus brinquedos recém-adquiridos (e que provocam a inveja de Nobita e de Gigante), ainda que Doraemon seja quem Suneo mais cobiça. É com o melhor amigo que gosta de desafiar e de atormentar Nobita pregando-lhe partidas.

A origem de um estilo

Ainda que, na perspectiva dos japoneses, anime se refira a todo o tipo de desenhos animados (nacionais ou estrangeiros), entendemo-lo como uma variação nipónica do movimento da imagem desenhada. Foi depois da Segunda Guerra Mundial que, por influência directa da pop art e dos mangas (bandas desenhadas do Japão), o anime se afirmou como um produto artístico que alastraria para o Ocidente. Reconhecemos hoje a ficção científica Astro Boy (que começou a ser exibida em 1963) como referência para o estilo japonês de animação. Grosso modo, as características mais evidentes de um anime (e por conseguinte do manga) são a presença de personagens desenhadas com olhos estilizados, grandes e brilhantes, expressões faciais que denotem estados de espírito, cabelo grande e boca e nariz pequenos. Tudo isto entre enquadramentos e pontos de vista ousados. Ao dar atenção, através da animação tradicional, ao cenário e à expressividade das cores, os animes proporcionam uma noção de tridimensionalidade próxima do real.

Os dois melhores amigos que fizeram história

Chama-se Fujiko Fujio e é o pseudónimo da dupla que deu vida a Doraemon. Hiroshi Fujimoto, nascido no primeiro de Dezembro de 1933, e Motoo Abiko (10 de Março de 1934) conheceram-se numa escola da província de Toyama, no Japão, onde se tornaram amigos de uma vida inteira quando perceberam que partilhavam o gosto pelo desenho. Influenciados grandemente pelo criador de Astro Boy, Osamu Tezuka (que mais tarde os conheceu e afirmou serem uma das maiores promessas do manga japonês), começaram a trabalhar juntos, enviando as suas bandas desenhadas para diversas publicações. Em 1954 instalaram-se em Tóquio e, em 1962, após Hiroshi se ter casado, co-fundaram a Studio Zero, que produziu vários animes, incluindo adaptações dos seus próprios trabalhos. Mais tarde, ambos divergiriam na sua relação com o público, sendo que um (Hiroshi) dedicou-se a trabalhar mais particularmente para as crianças e outro (Motoo) para os adultos. As diferenças levaram a que ambos se separassem profissionalmente em 1987, ainda que se mantivessem amigos próximos. A decisão seguiu-se à descoberta de um cancro de que Hiroshi era vítima e que o conduziu à morte em 1996. Apesar de se debruçar especialmente em Doraemon (manga e anime) o Museu Fujiko F. Fujio (pseudónimo de Hiroshi após a separação da dupla), que abriu há dias na cidade de Kawasaki (perto da capital), divulga, entre cinquenta mil peças, outros trabalhos do artista, como Obake no Q-taro, Kiteretsu ou Ninja Hattori (os últimos dois foram exibidos em Portugal pelo Canal Panda).

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