O GATO ESCONDIDO
No tocante às mudanças institucionais, o tratado constitucional de 2004 previa um presidente da União, novas regras de votação por maioria, um ministro dos Negócios Estrangeiros, um serviço diplomático europeu, o alargamento de poderes do Tribunal de Justiça, alterações na estrutura da Comissão e redução do número de comissários, uma minoria de bloqueio de 30%, alguns poderes de intervenção dos parlamentos nacionais, uma repartição de competências que reforça os poderes dos órgãos da União, um Procurador Público europeu, a remoção de travões à cooperação reforçada e novos poderes de veto para o Parlamento Europeu em mais 40 áreas.
A cimeira de Bruxelas determinou que, nos tratados a celebrar, tudo isto se mantenha, bem como a Carta dos Direitos Fundamentais (esta, com uma ressalva quanto ao Reino Unido).
E também no âmbito da segurança social, da economia, dos serviços públicos, dos assuntos internos, da justiça, da imigração e da política externa e de defesa, não há qualquer alteração relevante ao texto de 2004.
Para além das questões de puro nominalismo, a única excepção é a relativa às condições de intervenção dos parlamentos nacionais que, face ao art.º 7.º do segundo protocolo anexo ao texto de 2004, podiam, se representassem pelo menos um terço do total dos votos a eles atribuídos, provocar o reexame dos projectos legislativos, e agora passarão a ter de reunir metade desses votos... O seu poder resulta assim significativamente esvaziado e até, na prática, de exercício impossível, por não ser de supor que pelo menos metade deles coincida em pronunciar-se contra a posição dos seus governos nos órgãos da União.
O mandato que a presidência portuguesa recebeu, quanto à reforma dos tratados, não lhe deixa qualquer margem de intervenção autónoma: foi-lhe entregue um rascunho minucioso que terá de passar a limpo escrupulosamente. Qualquer terceiro amanuense é capaz de o fazer.
A matéria tem uma natureza constitucional que não permite dúvidas. A insuspeita Angela Merkel acaba de dizer, no Parlamento Europeu, que "o acordo de Bruxelas tornou possível preservar a substância do tratado constitucional" ("die Substanz des Verfassungsvertrages zu bewahren").
O também insuspeito Freitas do Amaral declara à Visão (28.7.07): "Se houver transferência de soberania, deve realizar-se um referendo; se não houver, se se tratar apenas de codificar o que já existe e acrescentar pequenas inovações de funcionamento, não haverá razão nenhuma para o referendo" (o que eu já tinha afirmado no DN a 18 de Abril).
O texto de 2004 não se limitava a codificar o que já existia. Propunha-se como verdadeira Constituição e implicava a alienação de mais parcelas das soberanias nacionais.
Como tal foi aprovado e sujeito a processos referendários em vários países.
Sabe-se finalmente que o texto do areópago de Bruxelas não só reproduz a sua substância, como vai mais longe na restrição da intervenção dos parlamentos nacionais.
Tudo isto, que todos os governos dos Estados membros sabem perfeitamente, tem também uma excepção caricata: o Governo português finge que o ignora, para não ter de se pronunciar sobre a realização do referendo que prometeu em 2005, quando já conhecia sobejamente o texto constitucional de 2004, e que deve incidir sobre uma matéria que, pela sua própria natureza, é de relevante interesse nacional (cfr. Constituição Portuguesa, art.º 115, 3)!
Mais: o Governo diz que falar agora em referendo fragilizaria a presidência portuguesa. Ou quer fazer dos outros parvos, ou este é um caso patente de reserva mental: pelos vistos, o que reforça a presidência portuguesa é a dissimulação, perante os demais Estados membros e perante os portugueses, escamoteando o compromisso por ele expressamente assumido com a intenção de se baldar a ele! E, se há um acordo oculto, assumido em Bruxelas, de dispensa dos referendos, o caso é ainda mais grave.
Seja como for, com tão exaltante exemplo de transparência e honestidade política de quem se está assim marimbando para a soberania nacional, propõe-se que o símbolo da presidência portuguesa passe a ser o do gato escondido com o rabo de fora.|