O Futurismo voltou

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"Central a este projecto [O Futurismo] estava o conceito de "Novo Homem", um ser humano distinto dos seus antecessores, tanto na sua maneira de viver quanto no seu modo de pensar, uma vez que a sua psique fora transformada por um derredor caracterizado por máquinas, indústria pesada, descobertas científicas, vastos aglomerados urbanos, rápidas telecomunicações e redes de transportes. [F.T. Marinetti] deu-se conta, mais depressa do que os seus contemporâneos, de que a arte se devia renovar para esta era moderna, aceitando os desafios do tempo, indo ao encontro das realidades do quotidiano, da produção em série e da actualidade. Ele foi o primeiro a falar do "planeta encolhido pela velocidade"."

Claudia Salaris in A Invenção da Vanguarda Programática

Em Nova Iorque, há dois anos, vi a assombrosa exposição Italian Futurism 1909-1944: Reconstructing the Universe. Todo o Futurismo italiano, desde o primeiro manifesto até ao ano da morte de Filippo Tommaso Marinetti. A exposição desenrolava-se, literalmente, pela galeria em espiral do Guggenheim. Não podia haver melhor edifício para o Futurismo do que o icónico edifício de Frank Lloyd Wright. A exposição começava na rotunda, cá em baixo, com os primeiros manifestos, com registos das serata e das primeiras obras de pintura, e terminava lá em cima com os painéis do edifício dos correios de Nápoles e com fotografias de mobiliário.

Embora a mostra fosse sempre a subir, eu vi-a de cima pra baixo. Subi ao topo do Guggenheim e desci de 1944 a 1909. Aquele museu é para ser visto de cima para baixo, cansa menos. Comecei na morte de Marinetti, quando tudo acabou, e acabei em 1909, com o manifesto onde tudo começou.

Marinetti quis mudar o mundo. Quis a cidade, a energia e a velocidade. Quis enterrar o passado. O Futurismo tem aquela energia maníaca que só a utopia consegue convocar - o paraíso, o comunismo, o III Reich, o V Império, o transumanismo. A crença no futuro, na máquina, na velocidade, na mecânica, no avião. Na nossa capacidade de ser mais produtivo, mais máquina, mais feliz. Marinetti teve como objectivo artístico, estético e político mudar o mundo e o homem. A sua grande obra foi um movimento que durou enquanto durou a sua vida e a sua energia. Depois morreu.

Começar pelo fim e chegar ao princípio foi a melhor forma de ver a exposição, porque o Futurismo está no seu melhor quando começa e é banal quando acaba. Começa com a intenção de construir um homem novo e, lá bem em cima, no último andar do Guggenheim, acaba com cadeiras, mobiliário, mesas e cartazes publicitários; objectos novos para o velho homem. Coisas estáticas. Decoração de interiores.

O Futurismo nasceu na Europa da guerra, dos impérios e dos cismas e terminou quando acordou esta excepção de paz e intercâmbio europeu onde crescemos, mas que agora começa a esmorecer de volta ao passado. Talvez por isso, ou por coincidência, hoje nasce um novo futurismo, não pela mão de artistas mas de matemáticos e cientistas: o transumanismo ou pós-humanismo, iluminado pela ideia de inteligência artificial (IA). Hoje, pensadores como Bostrom, autor do livro Superintelligence, sonham com uma evolução da humanidade assistida pela tecnologia, fundindo-se com ela e transformando-se em software: a pós-humanidade, onde a morte é derrotada, a experiência mental é expandida e os nossos descendentes colonizam o universo como software.

O Futurismo foi arte política. Foi um programa total, artístico, social, cultural, político, todo ele nascente da ideia e da poesia. Marinetti foi um grande programador, um autor-curador com a desmedida ambição artística de influenciar a sociedade pela arte, de intervir, de mudar o homem. Parecem naïfs as intenções de Marinetti, mas são ideias que voltam a estar na ordem do dia, agora pela ciência. Se lermos os manifestos futuristas, basta trocar o automóvel pelo computador e a máquina pelo chip, e estamos de novo no velho sonho cristão-humanista-comunista--fascista, o sonho milenar do nascimento de um homem novo. Marinetti queria um homem com rodas e com asas. Os futuristas de hoje, que vêm da ciência, da matemática e da filosofia, querem um homem que passe as suas limitações, querem um homem que possa substituir as suas peças biológicas e fazer download das suas memórias.

O pós-humanista Bostrom prevê três cenários para a humanidade. Ou viramos software e colonizamos o universo ou somos vítimas de uma catástrofe da qual a espécie não recupera, extinguindo-se, ou continuamos na mesma, na Era Humana, como ele lhe chama.

A exposição que vi em Nova Iorque começava com os manifestos, a velocidade e a utopia do homem novo, e terminava com uma mostra de mobiliário; confortáveis cadeiras onde o homem novo, já velho, podia descansar os seus ossos e as suas dores.

Eu quero crer que vamos continuar na Era Humana e que toda esta investigação sobre IA resultará apenas em artefactos mais confortáveis e inteligentes para deleite e conforto dos velhos ossos do velho homem. Mobiliário inteligente, digamos.

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