O futebol português: o estado de urgência
O clubismo. Foi uma das primeiras palavras que aprendi quando cheguei a Portugal há 20 anos. Mal eu soube falar português, fizeram-me a tal pergunta: Olivier, és de que clube? A minha resposta - "eu sou do Mónaco" - não era satisfatória. Não, Olivier, és de que clube aqui em Portugal? Aqui em Portugal, percebeste? Durante vários anos, porque tenho uma ligação forte a Coimbra, tentei safar-me com o tal: sou da Académica! Olhavam para mim como se eu fosse um extraterrestre. Rapidamente, também me apercebi de que o clubismo também é uma maneira em Portugal para as pessoas mais tímidas socializarem. No local de trabalho, às vezes o futebol é a forma de iniciar uma conversa. Grave ou não? Nada grave. Até faz sentido num país como Portugal que tem a cultura do futebol. França não tem esta cultura. Nunca cheguei ao trabalho em França, dizendo: já viram, o meu Mónaco perdeu novamente contra o Porto? Ainda bem. Teriam gozado comigo. Mas lá quase ninguém entende de bola.
Sim, considero que em Portugal o clubismo é saudável quando não ultrapassa os limites. Mas, desde há 3-4 anos, a situação mudou. E a minha previsão é que se não houver uma tomada de consciência generalizada, algo de grave irá acontecer. Sim, algo de muito grave. Porque como disse, e bem, o presidente da Federação Portuguesa de Futebol, Fernando Gomes, existe neste momento um clima de ódio no futebol português. Não há uma semana que passe sem um insulto ou um incidente. Isso já não é rivalidade. É guerra. E sabemos como as guerras acabam. Com mortos. Está na hora de reagir, de prevenir antes que seja tarde de mais.
Na minha opinião, quem tem uma das maiores chaves do problema é a comunicação social. Entendo o dilema de alguns jornais e televisões. Que audiência teve a TVI quando passou o debate em outubro de 2015 entre Pedro Guerra e Bruno de Carvalho ? Audiência brutal, imagino eu. Mas será que os fins justificam os meios? A liberdade de expressão tem limites. Sei que em Portugal a censura está associada ao regime de Salazar mas o meu olhar de fora faz-me pensar que passamos do 8 para o 80. Em nome da liberdade de expressão, agora publica-se tudo em Portugal. E pouco importam as consequências. Porque é que por exemplo não há mais controlo nas caixas de comentários dos jornais onde muitas vezes os adeptos passam o tempo a insultar-se? Não haverá leitores que podem ser banidos por apologia ao ódio? Também existe a tal teoria "se não está contente, muda de canal". E pergunto eu: mas se todos os canais derem o mesmo tipo de debate à mesma hora... o que faço eu ? Sim, leio. Aliás, já não vejo mais os debates que passam mais tempo a debater a arbitragem do que o futebol. Porque afinal é isso que me faz mais confusão. Num país que já ganhou oito Taças europeias (quatro vezes mais do que os clubes franceses), num país que tem e já teve alguns dos melhores jogadores e treinadores do mundo, não se pode falar do que realmente interessa, ou seja, o jogo? Conheço cada vez mais apaixonados pelo futebol que já não suportam o clima de ódio que se instalou em Portugal. Que não se reveem nesta violência. Aliás, partindo do princípio de que pelo menos 50 por cento da população gosta de futebol, porque é que as guerrinhas entre os clubes não fazem vender mais? Porque as pessoas já não aguentam mais. Por isso, a minha convicção é que em Portugal, nos próximos anos, haverá um novo modelo de debates com uma outra visão de desporto, em que será possível discutir, rir e falar de futebol sem se chamar nomes ou insultar os rivais. Mas em alguns jornais ou TV há quem ainda defenda que o povo quer sangue. É isso que faz vender. Sim, faz. Mas isso faz-me recordar um grande jornalista que conheci que dizia: é a tal diferença entre o interessante e o importante. O que é mais importante? A morte da princesa Diana ou o genocídio do Ruanda? O genocídio, claro. Só que nós jornalistas vendemos ao povo durante vários anos a ideia de que a princesa Diana era uma figura importantíssima. Por isso, quando ela morreu, mereceu mais destaque do que o genocídio ruandês. Por isso, sim, o povo português, a quem venderam a novela entre os clubes, uma novela que dá lucros, habituou-se e não será fácil vender a ideia contrária, de que agora tudo isso não é nada relevante e que afinal o mais importante é o jogo, dentro das quatro linhas. É pena porque, no aspeto meramente desportivo, Portugal é um grandíssimo país de futebol.
Correspondente da rádio France Inter em Portugal