O futebol está de volta à Amadora. A segunda vida do Estrela
Final de tarde de terça-feira na Reboleira. O dia vai dando lugar à noite. O trânsito é intenso no sentido de Lisboa para a periferia. O barulho dos comboios da Linha de Sintra e dos carros dão som a uma paisagem urbana e multicultural. No Estádio José Gomes, são percetíveis os sinais de degradação e o símbolo tricolor que tão alto elevou a cidade da Amadora. O campo pelado continua operacional nas traseiras da bancada nascente, mas é no relvado do velhinho estádio que as várias camadas jovens vão treinando.
Ricardo Monsanto, treinador da recém-criada equipa sénior, dá conta ao DN do entusiasmo pela vitória caseira do último domingo presenciada por mais de um milhar de pessoas sobre a Associação da Torre (2-0) e desdobra-se em elogios ao ataque do Talaíde, que neste domingo recebe o Estrela num "campo difícil", um sintético de dimensões reduzidas.
Os jogadores vão aparecendo a conta-gotas, grande parte após um dia de trabalho. Enquanto se vestem, com equipamentos trazidos de casa porque os do clube ainda não estão disponíveis, toca música africana no balneário. Às 20.30, e não de manhã como nos tempos de Fernando Santos ou de Jorge Jesus, o treino começa no relvado, partilhado com os escalões de formação. Já com a sessão a decorrer chega Rui Silva, pouco depois de ter despido a pele de advogado para vestir a de presidente.
É esta a nova vida do Clube Desportivo Estrela, fundado em 2011 com "estatutos mais modernos mas com a raiz nos do Clube de Futebol Estrela da Amadora", histórico que conquistou a Taça de Portugal em 1989-90 ao bater o Farense na finalíssima (2-0) e que marcou presença em 16 edições da I Liga - dois sétimos lugares como melhores registos (1993-94 e 1997-98) -, mas que declarou falência e foi extinto em 2011, dois anos após ter caído administrativamente da elite do futebol português. A reconstrução tem sido feita pedra sobre pedra, com a introdução de um escalão a cada época. Nesta temporada foi a vez dos seniores. "Queremos colocar o clube nos patamares competitivos em que já esteve, ou seja, na I Liga. Com muita sorte, levará cinco anos, mas poderá levar mais", ambiciona o líder tricolor, que neste verão reuniu as condições financeiras e estruturais para reativar o escalão, em parceria com a academia norte-americana Valeo, que "comparticipa na construção da equipa e ajuda financeiramente nas inscrições."
A ideia é suportar a equipa sénior com camadas jovens sólidas, desde os benjamins até aos juniores. "Há muitos atletas de referência nacional que começaram nos escalões mais baixos do Estrela da Amadora, como o Abel Xavier, por exemplo. O objetivo é alimentar a equipa sénior com a nossa formação na medida do possível, um pouco à semelhança do Athletic Bilbao, embora aí haja todo um contexto regional. Queremos um clube a crescer de uma comunidade", vincou o presidente da direção.
Antes do futebol, foi introduzido o atletismo, numa vertente popular - um dos atletas é precisamente o presidente. Entretanto, e com grande sucesso, foi a vez do ténis de mesa. "Ganhámos os jogos todos que disputámos no ano passado, quase todos por 4-0, que é o máximo. Ganhámos a competição distrital e subimos à divisão nacional", frisou Rui Silva.
O percurso do novo Estrela vai iniciar-se na Série 2 da 1.ª Divisão Distrital (sexto patamar para os clubes de Lisboa), tal como o Belenenses. Os dois históricos têm objetivos comuns e já vão trocando provocações saudáveis a propósito do jogo de 6 de janeiro, na Reboleira, mas Rui Silva, 47 anos, acredita que os amadorenses partem atrás. "Aquilo que se passou com o Estrela da Amadora não é de perto nem de longe o que se passa com o Belenenses. São duas realidades completamente diferentes. O Belenenses tem um estádio que é deles, o Estrela não. O Estádio José Gomes faz parte da massa insolvente do processo de insolvência do Clube de Futebol Estrela da Amadora. Temos é um contrato de utilização do estádio. Mas a ambição é igual à do Belenenses. Sem desprimor pelos clubes de bairro que existem pela cidade e pelo país, que têm uma função muito importante de captar jovens e tirá-los da rua, não queremos ser isso. Queremos ser um clube de referência na cidade, no distrito de Lisboa e no país", vincou o presidente, que não sabe onde está a Taça de Portugal e o troféu de campeão da II Divisão Nacional de 1992-93: "Quem gere isso é o tribunal de Sintra, onde está o processo, juntamente com o administrador de insolvência."
Ricardo Monsanto foi campeão da 1.ª Divisão da AF Lisboa pelo Torreense B em 2006-07, mas não contava voltar ao sexto escalão... até à chamada do Estrela da Amadora. "A minha carreira já estava noutros patamares, mas estou aqui porque é o Estrela. Estou tão ou mais feliz como noutros clubes no Campeonato de Portugal ou até numa II Liga estrangeira", começou por contar o novo treinador dos tricolores.
Além de baixar várias divisões, o técnico de 39 anos lida com a missão de construir uma equipa de raiz. Primeiro, recrutou 16 jogadores que já tinha identificados. Depois, promoveu captações e aí sentiu a grandeza do Estrela. "Passaram por aqui 400 jogadores, cheguei a ter 121 num treino, tive quase sempre 60 ou 70 atletas nos primeiros 15 dias e se calhar cometi as maiores injustiças do mundo. Mas até o Deco esteve a treinar no Benfica, e não foi com 400 nem com 121, e não ficou", frisou, contando alguns casos caricatos.
"Apareceram aqui jogadores que nunca tinham jogado futebol federado, nem no Inatel, que ao saberem que o Estrela da Amadora ia jogar na última divisão achavam que podiam ficar. Também apareceu um jornalista, que até já tinha jogado nestas divisões, a pedir-me para treinar à experiência para fazer uma reportagem, em que contou o que sentiu no balneário e no treino e qual era o sentimento dos outros jogadores. Só eu é que sabia", desvendou, assumindo que lhe pediram que "fosse capaz de construir uma equipa de futebol, não uma equipa de café que viesse para esta divisão envergonhar a história do Estrela".
Conhecedor da divisão, Ricardo Monsanto dá a receita para a promoção: "Em casa vamos jogar a toda a largura e fora teremos de nos adaptar. Se ganharmos os jogos em casa e formos pontuando regularmente fora..."
Abel Xavier, Dimas, Paulo Bento, Miguel, Jorge Andrade, Calado ou Chainho foram alguns dos mais notáveis futebolistas que passaram pelo Estrela da Amadora. Jorge Andrade, um dos expoentes máximos da formação do clube, já fez algumas visitas às camadas jovens no âmbito da iniciativa Convidado Cinco Estrelas e diz que como amadorense está "muito contente por ver as coisas saírem do estado em que estavam", recordando um clube "humilde, familiar, com uma cultura bairrista e que dava todas as condições para trabalhar e com muita união de grupo".
"Muitos jogadores saíam do Estrela para os clubes grandes e outros faziam o percurso inverso para continuar as suas carreiras", frisou. Já Rebelo, recordista de jogos (308) pelos tricolores na I Divisão, acredita que este "é o renascer de um Estrela" que lhe "diz muito". "Acho que tem sido feito um trabalho positivo, de baixo para cima, com os alicerces bem montados. Tínhamos um bom espírito, com um núcleo duro que permanecia durante cinco, seis ou até dez anos", acrescentou o antigo central/trinco, que vestiu o equipamento tricolor entre 1987 e 2001.
O DN procurou falar com alguns elementos da última equipa do Estrela da Amadora a participar na I Liga (2008/09), mas alguns preferiram não tecer qualquer tipo de comentários, pois ainda esperam ser ressarcidos pelos salários que não receberam. O melhor marcador dos amadorenses nessa época, Anselmo, lembra "um ano difícil".
"Como qualquer trabalhador que não recebe o seu vencimento, é complicado, porque todos têm as suas despesas e têm que viver. Ainda por cima, a profissão de futebolista exige muita inspiração e bem-estar psicológico e físico. É complicado estar um ano sem receber ordenados. Na altura, até foi o Sindicato de Jogadores que nos pagou dois meses, os únicos que recebemos ao longo da época. Vivemos uma época inteira com dois salários pagos pelos Sindicato. Houve casos mais difíceis do que outros. Havia jogadores com família e filhos, que vinham do estrangeiro... não sei como houve gente que conseguiu sobreviver e como conseguimos fazer uma época tão boa como a que fizemos [11.º lugar e meias-finais da Taça de Portugal]. Éramos realmente um grupo forte, uma verdadeira família. Os jogadores que podiam ajudavam outros e as famílias, com apoio dos adeptos e de pessoas próximas do clube", recordou o antigo avançado, que atualmente trabalha pelo Sindicato de Jogadores.
"O antigo Estrela tem contas a saldar comigo, mas é um processo que está em tribunal e que ainda envolve algumas pessoas que trabalhavam no clube. Espero que tudo se resolva. Fico feliz pelo surgimento do novo clube, não tenho nada contra", acrescentou.