o frigorífico, a bicicleta, o pavão e o porco

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Nos tempos em que o trânsito urbano, em vez de se reger por semáforos sincronizados, era pontuada pelos gestos e apitos dos "cabeças de giz", como eram alcunhados aqueles polícias devido ao capacete que os identificava, até o Natal tinha um outro espectáculo. "Entre outras notas de reportagem merece especial relevo o acto dum aleijadinho, apoiado sobre duas muletas, que, ao entregar a sua oferta, afirmou contribuir com muito gosto para o êxito da jornada, pois - acrescentou - 'os sinaleiros ajudam-me sempre a atravessar as ruas'", registava o DN de 23 de Dezembro de 1951.

"O Natal do Sinaleiro, simpática e generosa iniciativa do Automóvel Clube de Portugal e que teve o patrocínio do nosso prezado colega O Século e do Diário de Notícias, realizou-se ontem em todas as capitais de distrito e em algumas cidades do País e ilhas adjacentes [na nomenclatura colonial da época, a designação para a Madeira e os Açores] - no prosseguimento de uma tradição que criou raízes e que, de ano para ano, se afervora" - enquadrava-se assim o evento, num estilo de escrita que fez a sua época.

E, "como de costume, o Natal do Sinaleiro constituiu um acontecimento citadino" - pois ainda não se engarrafava o trânsito da capital para as multidões irem ver a árvore de Natal gigante implantada no Parque Eduardo VII. "Em Lisboa, às primeiras horas da madrugada de ontem, foram instalados postos [para recolha das prendas] na Avenida da Liberdade, Restauradores, Cais do Sodré e praça Luís de Camões" - o mesmo sucedendo pelo País, mas o DN só irá fazer breves referências ao Porto e a Coimbra.

"E logo de manhã os presentes e donativos em dinheiro começaram a afluir e amontoaram-se junto das árvores simbólicas, enquadradas em vistosa decoração, encimada pelo emblema do clube organizador", o ACP. "Os donativos em dinheiro foram numerosos e devem contar-se em algumas dezenas de contos." Mas, antes ainda das "notas curiosas" de reportagem, esclarecia-se que "nem só os automobilistas contribuíram para o montante, pois que muitos peões levaram aos sinaleiros as suas lembranças".

À boa maneira lusitana, "junto aos postos aglomeraram-se, durante o dia, centenas de curiosos para assistir à entrega das dádivas". A mesma curiosidade que leva as pessoas a ir ver os mortos num acidente, mas não as desperta para entrar num museu.

"E tiveram que ver, porque na aluvião dos fardos de bacalhau, das garrafas de Porto, das caixas de bolacha, dos garrafões e pipas de vinho, etc., surgiram presentes que atraíram as atenções gerais, nomeadamente nos Restauradores, onde podiam admirar-se, por exemplo, um frigorífico americano de categoria, uma bicicleta com motor, um pavão, um porco, etc." E em Coimbra, onde "uma casa de mobílias entregou uma cómoda e outras peças de mobiliário", "além de géneros de mercearia, roupas, galináceos, bolachas, sabões, etc., foram também entregues importantes donativos". Já só faltava fazer a distribuição pelos sinaleiros. Agora, ninguém se lembraria de presentear os esforçados semáforos.

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