O fogo, o gelo e as emoções que lhes associamos

Concerto do Remix Ensemble confrontou obras de Richard Wagner e de Helmut Lachenmann.
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Menos de 24 horas após a abertura do Ano Alemanha na Casa da Música, o Remix Ensemble, dirigido pelo seu titular Peter Rundel, participou no fim de semana "Uma história da Alemanha" com um programa que emparelhava ...zwei Gefühle..., Musik mit Leonardo (1991-92) e Mouvement (-vor der Erstarrung), de 1982-84, duas das mais conhecidas obras de Lachenmann (n. 1935) - compositor em residência na Casa ao longo deste ano - e dois excertos da Ring Saga de Jonathan Dove/Graham Vick, a partir do Anel do Nibelungo, de Wagner: o Despertar de Brünnhilde e Dueto de Amor, do final do Siegfried, e a Imolação de Brünnhilde, final do Crepúsculo dos Deuses. Solistas em Wagner/Dove eram o soprano austríaco Brigitte Pinter, que substituiu à última hora Magdalena Anna Hofmann, e o tenor Jeff Martin. A primeira, um mezzo tornado soprano dramático (como a recentemente falecida Janis Martin, que se notabilizou nos grandes papéis wagnerianos e straussianos, tal como a ainda jovem Pinter vem fazendo), veio pela primeira vez ao Porto (cantou em 2006 em Lisboa o díptico Sancta Susanna/Erwartung) - ela trabalhou com Rundel em 2012 na Trienal do Ruhr, numa produção do Prometheus, de Orff - e deixou o desejo de a ouvirmos de novo em breve por cá: a sua ascendência de mezzo dá uma sólida sustentação à sua tessitura e colora o seu timbre até ao registo médio. O registo agudo é bonito, luminoso e firme e, com a idade, ganhará ainda em penetração dramática. Quanto à presença física e histriónica, ela é já muito carismática. Se não cansar a voz demasiado cedo, Pinter é um soprano dramático com que se deverá contar! Já Jeff Martin fez no Porto a Ring Saga (setembro de 2011); desta vez, causou boa impressão, mostrando que tem a estamina e o timbre denso, potente e brilhante de um Heldentenor wagneriano.

As transcrições de Dove para ensemble estão extremamente bem feitas e o fio de emoções do "Anel do Nibelungo" passa inteiro da grande orquestra original para esta versão, com Rundel demonstrando que mantém toda a eloquência de diretor que se lhe reconhece no repertório moderno/contemporâneo também neste cume do Romantismo musical germânico oitocentista!

A Musik mit Leonardo teve o próprio Lachenmann como narrador, colocado no coração do ensemble. O texto (em alemão) é uma narrativa meio verídica, meio poética da autoria de Leonardo da Vinci sobre uma visita sua aos cimos vulcânicos do Monte Etna, na Sicília e é tratado nesta obra de forma entrecortada, muito rítmica, jogando essencialmente com o seu valor fonético-musical, numa interação nivelada com os instrumentos que ao mesmo tempo influencia a ação sonora dos instrumentos à maneira de uma nova música programática. Pena que o programa só incluísse a tradução portuguesa do texto. A escrita é muito variada e imaginativa, estabelecendo os contornos de quatro secções ligadas por interlúdios. A sonoridade é tipicamente lachenmanniana, com um léxico sonoro (música/ruído) imediatamente reconhecível e formalmente bem ancorado. Apesar de não ter a mediação de um texto, Mouvement pareceu-nos comunicar mais diretamente (imediatamente) com quem escuta atentamente: o universo tímbrico e o pontilhista contraponto instrumental foram aqui tratados de forma muito eloquente por Lachenmann, alcançando um grau notável de "teatro" instrumental.

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