O fogareiro
Choquei ontem com o paradoxo central ao universo futebolístico: um país, o Brasil, que produz simultaneamente os melhores jogadores (ex: Kaká) e os piores espectadores (ex: Carlos Alberto Parreira); outro país, a pátria do futebol, ao mesmo tempo maternidade dos melhores espectadores e da mais coagulada e septicémica artéria futebolística mundial, muito embora esta, para alívio geral e continuado fermento de ilusões dos ingleses, seja pontualmente amenizada pelos desvarios da genética (Waddle, Gascoigne, Rooney) e, ultimamente, por uma salvítica injecção de france-ses, espanhóis, finlandeses, enfim, de quaisquer pessoas de quaisquer países.
Vi o Brasil-Japão no seio de uma amostra de 150 brasileiros, e, folgo em informar, exonerei-me da experiência aos 70 minutos de jogo bastante satisfeito por só precisar de tratamento psiquiátrico urgente, uma vez que, a ter levado a carabina, estaria neste momento a aterrar em Haia para responder pelo crime de genocídio.
Asseguro que, durante a hora e picos que me aguentei no ventre daquele cardume de inconscientes, não houve, pela parte de ninguém, um único minuto completo de atenção ao jogo, aos jogadores, ao futebol. Um fluxo heraclitiano de imperiais, caipirinhas, entrecosto assado, crianças e cadelas grávidas destruiu qualquer veleidade de concen- tração analítica ou emocional, e um fedelho envolto numa enorme ordem e progresso, permanentemente de costas para a televisão, não parava de coordenar com aquele tambor insuportável lá deles o ritmo das dezenas de pessoas que a todo o momento pas- savam coreograficamente à frente do ecrã. O membro mais atento daquele carnaval seria talvez o fogareiro, que expeliu irrepreensivelmente uma espessa cortina de fumo de várias tonalidades por cima do LCD durante todo o jogo.
Estou convencido de que este horroroso festival de desurbanidade não é mais que o reflexo da total incapacidade daquela gente de observar o futebol como objecto desportivo, o campo mais bonito inventado até hoje onde as lutas físicas, intelectuais e morais não causam mortos. Aqueles 150 seres estavam ali para comer, beber, dançar, cantar, falar uns com os outros sobre a gravidez da cadela e festejar a vitória do Brasil, nunca em tempo algum lhes passou pela cabeça o disparate de apreciar o futebol brasileiro.
Para terem uma ideia do prolongado filme de terror a que fui sujeito, só em casa é que me dei conta de que o golo do Juninho não tinha sido um grande golo, mas sim um magnífico exemplar do galinheiro de frangos que é o guarda-redes do Japão, uma vez que os sete minutos subsequentes ao pato foram ocupados por uma miríade de contorções corporais com o objectivo único de se substituírem ao fumo na tarefa de abafar a imagem do LCD.
Que saudades dos jogos visionados no meio das aglomerações violentas de matriz hooliganista dos ingleses, onde, quando não impera um silêncio e rigidez corporal nacional-socialista, o que se ouve e sente são manifestações com relação exclusiva ao que se está a passar em campo; com os ingleses, como aliás também com os holandeses - não por acaso também hooligans -, o intervalo é recebido com luto, apenas suportado porque, na realidade, existem indicações científicas seguras de que os jogadores se cansam, e não com uma explosão de danças, música e alegria em estar vivo, como se a interrupção ou o fim de uma partida de futebol não representasse um vazio fundamental e irreparável na vida de uma pessoa.
* maradona é autor do blogue "acausafoimodificada.blogspot.com" e escreve
aos domingos no Diário do Mundial