O fim de "um país, dois sistemas"? China discute lei da segurança nacional de Hong Kong

Ativistas contra a aplicação da lei que proíba a "traição, secessão, sedição e subversão". Acusam Pequim de atacar semi-autonomia e apelam a protestos.
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O legislativo chinês vai abordar, durante a sua sessão plenária, que arrancou esta sexta-feira, a lei de segurança nacional de Hong Kong, confirmou o vice-presidente do Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional (APN), Wang Chen.

"O aumento dos principais riscos para a segurança nacional na Região Administrativa Especial de Hong Kong tornou-se um grande problema", admitiu Wang, referindo-se aos protestos pró-democracia que abalaram a cidade no ano passado.

Citado pela agência noticiosa oficial Xinhua, Wang Chen considerou que os protestos "desafiaram a base do princípio 'um país, dois sistemas', prejudicaram o Estado de direito e ameaçaram a soberania nacional, a segurança e os interesses de desenvolvimento da China".

A fórmula 'um país, dois sistemas' foi usada em Macau e Hong Kong, após a transferência dos dois territórios para a China, por Portugal e pelo Reino Unido, respetivamente, e garante às duas regiões um elevado grau de autonomia a nível executivo, legislativo e judiciário.

Wang considerou que "é necessário tomar medidas vigorosas, com base na lei, para impedir, interromper e punir tais atividades".

A lei proíbe "qualquer ato de traição, separação, rebelião, subversão contra o Governo Popular Central, roubo de segredos de estado, a organização de atividades em Hong Kong por parte de organizações políticas estrangeiras e o estabelecimento de laços com organizações políticas estrangeiras por parte de organizações políticas de Hong Kong".

O artigo 23 da Lei Básica, a miniconstituição de Hong Kong, estipula que a cidade avance com legislação nesse sentido, mas isso revelou-se difícil, face à resistência da população de Hong Kong, que teme uma redução das suas liberdades.

Lei da segurança nacional usada para prender ativistas

Na China continental, os tribunais recorrem frequentemente à lei de segurança nacional, incluindo acusações como "separatismo" ou "subversão do poder do Estado", para prender dissidentes ou ativistas, que desafiam o domínio do Partido Comunista Chinês.

A Declaração sino-britânica de 1984, que serviu para acordar a retrocessão de Hong Kong do Reino Unido para a China, em 1997, estabeleceu a manutenção por 50 anos, a partir da data de transferência, de uma série de liberdades inexistentes na China continental.

A legislação daria a Pequim o poder para combater os protestos de Hong Kong, que são vistos como um desafio ao Partido Comunista Chinês e ao líder da China, Xi Jinping.

A lei de segurança nacional, proposta pelo governo de Hong Kong, em 2003, teria permitido às autoridades encerrar jornais e realizar buscas sem mandato. Essa proposta foi abandonada depois de provocar grandes protestos.

Com a legislação aprovada pela APN, onde cerca de 70% dos 3.000 deputados são membros do Partido Comunista Chinês, a China está efetivamente a contornar o governo de Hong Kong, minando a relativa autonomia concedida ao território, uma das maiores praças financeiras do planeta, e essencial no fluxo de capitais e investimento entre a China e o resto do mundo.

Num esforço para afastar as preocupações internacionais, o ministério chinês dos Negócios Estrangeiros enviou uma carta na noite de quinta-feira aos embaixadores em Pequim, pedindo-lhes que apoiem a legislação.

"Há muito que a oposição em Hong Kong conspira com forças externas para realizar atos de secessão, insurreição, infiltração e destruição da China", lê-se no documento.

Hong Kong é há seis meses palco de manifestações, iniciadas em protesto contra uma proposta de alteração à lei da extradição, que permitiria extraditar criminosos para países sem acordos prévios, como é o caso da China continental.

O Governo de Hong Kong acabou por retirar a proposta, cedendo a uma das exigências dos manifestante. Mas a decisão não foi suficiente para travar os protestos antigovernamentais em prol de reformas democráticas e contra a alegada crescente interferência de Pequim no território.

Ativistas acusam Pequim de atacar semi-autonomia

Ativistas pró-democracia de Hong Kong disseram, também esta sexta-feira, que a decisão da China de impor a lei de segurança nacional é um dos piores ataques à semi-autonomia do território e apelaram à realização de protestos nas ruas.

Esta lei de segurança, que visa proibir a "traição, secessão, sedição (e) subversão", é um dos destaques da sessão anual da Assembleia Popular Nacional, o parlamento chinês, que está a decorrer.

O texto surge após repetidas advertências do poder comunista chinês contra a dissidência em Hong Kong, abalado no ano passado por sete meses de manifestações que culminaram na exigência de reformas democráticas e que foram quase sempre marcadas por confrontos com a polícia.

"É o fim de Hong Kong, o fim [do princípio] 'Um país, dois sistemas', não se enganem", afirmou aos jornalistas o deputado pró-democracia Dennis Kwok.

Hong Kong regressou à China em 1997 sob um acordo que garantia ao território 50 anos de autonomia e liberdades que são desconhecidas no resto do país, de acordo com o princípio "Um país, dois sistemas".

Para o ativista Joshua Wong, uma figura do movimento de desobediência civil em 2014, a mensagem enviada pela China aos manifestantes pró-democracia não deixa margem para dúvidas: "Pequim está a tentar silenciar as vozes dos críticos de Hong Kong com força e medo", escreveu Wong na rede social Twitter.

Muito rapidamente, nos fóruns de discussão usados pelo movimento pró-democracia, multiplicaram-se os apelos para se repetirem os protestos nas ruas.

O anúncio de Pequim pode reacender a 'chama' dos protestos depois de meses de calma, muito por causa das medidas tomadas para conter a pandemia da covid-19, num momento em que estão agendadas eleições para o parlamento de Hong Kong em setembro e depois da ala pró-Pequim ter perdido as eleições locais em 17 dos 18 distritos.

Em 2019, um movimento pró-democracia abalou a ex-colónia britânica, mobilizando milhões de pessoas, em protestos quase diários contra o crescente domínio de Pequim, segundo os manifestantes.

Para os ativistas, se o projeto for aprovado, esta será uma das violações mais graves às liberdades de Hong Kong desde 1997.

Segundo a deputada pró-democracia de Hong Kong Tanya Chan, Pequim "não mostra respeito pelo povo de Hong Kong".

Quando o projeto foi anunciado na noite de quinta-feira, poucos detalhes foram comunicados, apenas o facto de fortalecer os "mecanismos de execução" em termos de "proteção da segurança nacional".

O artigo 23 da Lei Básica, que serve de 'constituição' na região administrativa especial chinesa, prevê que Hong Kong seja dotada de uma lei que proíba a "traição, secessão, sedição e subversão".

No entanto, o texto, na prática, nunca foi aplicado, uma vez que a população do território o vê como uma ameaça aos seus direitos, como os da liberdade de expressão ou de imprensa, desconhecidos na China Continental liderada pelo Partido Comunista.

A última vez que se tentou aplicar o artigo ocorreu em 2003 e fracassou devido após grandes manifestações nas ruas de Hong Kong.

Os Estados Unidos já reagiram, alertando a China de que condenarão a adoção de uma lei de segurança nacional em Hong Kong porque esta será "muito desestabilizadora" para aquele território semi-autónomo.

"Qualquer tentativa de impor uma lei de segurança nacional que não reflita a vontade dos cidadãos de Hong Kong será muito desestabilizadora e será fortemente condenada pelos Estados Unidos e pela comunidade internacional", disse a porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, Morgan Ortagus.

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