O fim de um casamento depois de 264 cortes de cabelo
Elizabeth abriu o penteador preto e eu observei-o a agitar-se diante de mim como um lençol aberto numa corda de roupa. Ela apertou os botões à volta do meu pescoço, colocou as mãos nos dois lados da minha cabeça e sussurrou: "Eu não consigo continuar a fazer isto."
"A fazer o quê?", perguntei.
"Isto", disse ela, gesticulando à nossa volta. "Eu tenho de te deixar ir."
Mas, mesmo assim, ela pegou num estojo preto e tirou uma tesoura e um pente. O cheiro a erva recém-cortada entrava por uma janela aberta na cozinha juntamente com os gritos das crianças do bairro.
"Quem é que te vai cortar o cabelo?", perguntou ela.
Eu encolhi os ombros.
Tínhamos partilhado este ritual durante mais de 22 anos e 264 cortes de cabelo. Ela passava as mãos pelo meu cabelo, empurrando a minha cabeça para a frente e para os lados, com os seus dedos a poucos centímetros dos pensamentos e desejos secretos que rodopiavam dentro do meu cérebro.
Ela puxou uma madeixa de cabelo com um pente e começou a cortar.
Quando nos conhecemos, na década de 1980, eu usava um penteado de risco ao lado, numa aparência formal e conservadora. No nosso segundo encontro, ela passou a ponta dos dedos pela minha franja e ofereceu-se para me cortar o cabelo pela primeira vez. Ao longo dos anos, muitas madeixas do meu cabelo escuro deslizaram pelo penteador e reuniram-se no chão da cozinha. Por fim, o risco ao lado desapareceu e laivos cinzentos começaram a misturar-se com o preto. Agora, o cabelo que caía era na sua maior parte cinzento, salpicado com fios pretos.
"Tens aí a máquina de aparar?", perguntei.
Ela meteu a mão dentro do estojo e puxou o pesado aparelho. Quando o ligou, ele emitiu um zumbido eletrónico baixo.
"Corta tudo", disse eu.
"O quê?"
"Eu quero que rapes tudo."
Se eu não tivesse cabelo, não importava que ela já não estivesse lá para mo cortar.
"Vai em frente", disse-lhe. "Força."
Fiquei a ver o cabelo cair no penteador. Os seus seios pressionavam o meu ombro enquanto a mão dela afastava o cabelo da minha cabeça. E então senti qualquer coisa húmida a cair na minha face. Ouvi um som, como um soluço, e depois voltei a ouvi-lo, mas era mais como um ruído de sucção, como o som de alguém a tentar recuperar o fôlego. As lágrimas começaram a cair-lhe pelo rosto.
"Vá, está tudo bem", disse eu.
Ela recuou, tinha o rosto vermelho e manchado. "É que estás tão diferente agora."
Ela levantou um espelho e eu estremeci. "Oh!", exclamei. Havia algo de honesto e ousado na minha aparência. "Rapa o resto."
"Mas vais parecer um doente com cancro.
"É só cabelo."
Ela terminou. Como se tivesse lido os meus pensamentos também, disse: "Sabes que estou mais forte agora. Eu consigo resolver--me sozinha."
"Eu sei isso", respondi.
Ao longo dos últimos dois meses, desde que me mudei, tínhamos estado envolvidos numa dança de visitas de fim de semana para eu manter o contacto com as nossas filhas. Eu ficava na nossa casa na Virgínia como se nada tivesse mudado. Mas tudo tinha mudado.
Ela esfregou loção no meu pescoço e puxou para fora a lâmina reta da máquina. Senti o metal frio na minha pele enquanto ela empurrava a minha cabeça para a frente e para baixo com as pontas dos dedos.
Fechei os olhos. Conseguia ouvir a nossa filha de 14 anos a tagarelar ao telefone e risos vindos da televisão ligada. As unhas do nosso cão faziam barulho no chão enquanto ele andava.
"Eu nunca te traí", disse-lhe, mantendo a cabeça para baixo e os olhos fechados. A lâmina ficou parada por um momento, depois deslizou até à base da minha nuca.
"Eu tive de fazer aquele teste de VIH", disse ela, "porque tu estavas a ter um comportamento fora do normal".
Fiquei ofendido quando ela me contou aquilo pela primeira vez. Quantas vezes fizemos amor? Foi em maior ou menor número do que os cortes de cabelo? Claro que o teste foi negativo. Eu podia contar pelos dedos de uma mão o número de pessoas com quem eu tinha tido relações íntimas antes dela.
O primeiro foi o meu vizinho de infância em Greensboro, na Carolina do Norte. Ele e eu éramos muito jovens para entender os nossos toques no escuro nas noites em que dormíamos em casa um do outro. Na faculdade, perdi a virgindade com Sally, uma ruiva tocadora de flauta, num ritual de passagem que eu queria simplesmente ultrapassar.
Quando tinha 20 anos e estava a passar o verão no Colorado com a minha tia Sheila e a sua namorada espírita, saí de um bar na periferia da cidade aos tropeções e de braço dado com Don, um jovem e bonito amigo da minha tia. Na sombra do Pikes Peak, ele e eu beijámo-nos. Ouvi a voz de Sheila a gritar ao longe: "Don, ele ainda não tem a certeza se é gay!"
Mas eu sabia.
Quando comecei a sair com Elizabeth, aos 21 anos, falei-lhe sobre Sally, mas não disse nada sobre Don. Essa parte da minha vida deveria ter sido apagada pela terapia de conversão, a qual envolveu rezar com a minha mãe na mesa da sala de jantar todos os dias para deixar de ser como era.
A primeira vez que Elizabeth e eu fizemos sexo foi num sofá no apartamento do meu irmão fora do campus universitário em Raleigh, na Carolina do Norte. Nenhum de nós era virgem, por isso não houve nenhum constrangimento desajeitado, tal como também não houve nenhuma paixão reprimida. Eu reconheci-o pelo que era; nunca seria melhor do que aquilo.
Por mais de 22 anos, depois de as nossas filhas nascerem, o meu cabelo ficar cada vez mais grisalho e o corpo de Elizabeth mais macio, mantive sempre o meu segredo fechado dentro de mim. Então, numa noite de quarta-feira, dez anos atrás, num estacionamento de uma superfície comercial, Elizabeth salvou-me. "Tu és gay?", perguntou.
"Eu não quero ser", respondi.
Pouco depois, o nosso casamento terminou, mas enquanto eu ainda mantinha as minhas visitas de fim de semana, apareceu Ray. No nosso segundo encontro, arranquei-lhe a roupa do corpo. No fim, ele pegou nas calças e examinou o fecho partido e o botão arrancado.
"Estas eram as minhas calças favoritas", disse ele. Eu ri-me. Ele não.
Elizabeth escovou os cabelos dos meus ombros e tirou-me o penteador. Levantei-me, vesti a camisa e tirei a vassoura do armário da cozinha para varrer o chão.
Quando as nossas filhas foram para a cama, eu vagueei pela casa observando as coisas que já não eram as minhas. Na mesa da sala de jantar estava o jarro de metal azul que encontrámos numa loja de antiguidades em New Hampshire. O quadro, na parede por cima da lareira, foi o meu presente para ela nos nossos vinte anos de casados. Ali estava o sofá onde Elizabeth e eu nos costumávamos sentar lado a lado com o cão a dormir aos nossos pés. O soalho de madeira rangia sob os meus pés.
Quando cheguei ao cimo das escadas, Elizabeth permanecia imóvel no corredor escuro.
"Posso dormir contigo, apenas dormir, esta última noite?", perguntei.
"Não me acordes de manhã", disse ela. Ela tirou a camisa de noite. Eu despi a camisa.
Aquele era o seu lado da cama, e este costumava ser o meu. Ali estava o edredão azul onde embalámos as nossas filhas recém-nascidas. Ali estavam as almofadas achatadas pelo uso.
Fiquei deitado de costas, acordado. Ela apoiou a mão no meu pescoço. Eu virei-me para o meu lado direito e ela para o seu esquerdo, enquanto nos envolvíamos no nosso agridoce ballet de despedida.
Na luz nebulosa da manhã, fechei a porta do quarto e dirigi-me aos quartos das minhas filhas. Primeiro o de Sophie. Ali estavam as caixas cheias com as suas bonecas. Prendi o seu cabelo escuro atrás da orelha e beijei-lhe a face quente.
Depois o de Marisa. Ali estavam os seus óculos. Peguei neles e limpei-os com a fralda da minha camisa.
"Agora vou trabalhar", murmurei, uma meia-verdade na meia--luz da manhã.
Atrás de mim ficava a casa cheia de segredos, e diante de mim estava o caminho que tinha pela frente. O que eu deixei: uma cadeira vazia à mesa, o cheiro da minha pele nos lençóis, uma pintura antiga, um cão a dormir, um jarro azul, a minha sombra persistente nos degraus da frente antes de eu partir.
William Dameron é escritor, vive em Boston e está a trabalhar num livro de memórias.
Exclusivo DN/The New York Times