"Como padre, sou uma obra dos outros, vivo uma relação permanente com eles, numa comunidade que marca a minha vida, realizo-me nessa espécie de tráfego quotidiano que me aproxima e reenvia quotidianamente para os outros." Assim se define José Tolentino Calaça de Mendonça numa entrevista ao DN em 2011. Quem o conhece reforça: "É um homem que vive para os outros.".Tolentino Mendonça é o homem que nos últimos tempos foi chamado a Roma pelo Papa Francisco para ocupar cargos que antes nunca tinham sido atribuídos a um português. Os sucessivos cargos deram-lhe exposição, embora já a tivesse como poeta, ensaísta, professor. Uma exposição que, diz quem o conhece bem, se calhar preferia não ter. "Se calhar, preferia estar a trabalhar para a Igreja mais na sombra do que em cargos com tanta exposição." Ele gosta do seu espaço, da sua solidão, que o ajuda a criar a sua poesia..Com um percurso intelectual reconhecido, com mais de 20 livros publicados, desde 1990, quando lançou o seu primeiro livro, Os Dias Contados, Tolentino Mendonça é definido como um homem de simplicidade e humildade enormes. Um homem com uma capacidade de diálogo inigualável, capaz de fazer pontes, onde estas parecem difíceis. Um homem capaz de olhar para o outro sem se escandalizar. "Um homem capaz de olhar para Jesus, para o Evangelho e de o transmitir de forma como só ele sabe, com tamanha profundidade, dimensão e discernimento que, quando as palavras lhe saem, soam a diferença e são capazes de captar a atenção de quem por norma não está atento.".José Tolentino Mendonça, Tolentino para os amigos ou padre Tolentino, é para alguns um homem da Igreja muito semelhante ao Papa Francisco. Talvez por isso tenha sido chamado a organizar o retiro quaresmal do Vaticano em 2018 com as suas reflexões subordinadas ao tema "O Elogio da Sede", talvez por isso tenha assumido, precisamente há um ano, a 1 de setembro de 2018, os cargos de arquivista e bibliotecário no Vaticano e de arcebispo de Suava..Por tudo isto, a nomeação para cardeal já era esperada, "só não se sabia quando. Aliás, se tivesse havido consistório em julho deveria ter sido nessa altura", diz o padre José Manuel Pereira de Almeida, que o substituiu na direção da Universidade Católica..A notícia foi dada pelo pelo próprio Papa, durante este domingo de setembro no Angelus. Tolentino deve ter sido informado antes, embora o Papa goste de surpreender. Pouco depois, falava com amigos em Portugal. "Estava calmo e tranquilo, a aceitar com simplicidade mais uma missão que lhe está a ser confiada", disseram-nos. Nestas alturas, "gosta de recato", contam-nos..O dia em que chorou quando recebeu o telefonema do Papa.Há um ano, no dia em que se soube que seria nomeado arcebispo e que partiria para Roma, começou a manhã a chorar ao receber um telefonema do Papa agradecendo-lhe o facto de ter aceitado o seu convite. "Emocionou-se pela dimensão da missão", dizem-nos. Aos amigos pediu ajuda. "Vais ter de me ajudar, não sei nada do que é preciso fazer", disse. Uma atitude que "surge pela sua grande humildade e simplicidade", conta ao DN o padre Hugo Gonçalves, pároco da Igreja do Campo Grande, e amigo de longa data de Tolentino Mendonça. "Emocionou-se com o telefonema do Papa. Pela dimensão do que lhe estava a pedir, e depois pediu ajuda aos outros. Isto revela quem ele é", sublinha o pároco do Campo Grande, que o conheceu na Universidade Católica, quando foi seu professor de Teologia Bíblica.."Foi meu professor entre 2007-2010 no curso de Teologia. A amizade surge depois e ao longo do tempo, a ponto de lhe pedir para ser meu diretor espiritual. Ele aceitou, com muita simplicidade. É um dos seus traços característicos. Estou-lhe muito grato, ajudou-me a caminhar com muita calma na minha missão como padre e sobretudo no aprofundar da minha relação com Jesus e na minha forma de estar junto da Igreja.".Hugo Gonçalves soube da notícia no domingo em que estava numa missão com jovens. É em viagem que fala com o DN: "O padre Tolentino tem palavras sábias. É daquelas pessoas que têm um interesse genuíno pelas pessoas. Quando nos escuta, escuta mesmo e dele surgem sempre palavras, que podem nem ser muitas, mas que vão diretas à alma. O facto de ser um homem da cultura dá-lhe uma capacidade de dialogar com o mundo, de estar no mundo e de discernir sobre os caminhos que o mundo pode seguir, que é ímpar.".Hugo Gonçalves vai desfiando as qualidade de Tolentino Mendonça, do padre Tolentino, como lhe chama, esquecendo-se de que já é arcebispo e à luz da hierarquia da Igreja deveria ser D. José Tolentino, mas ele "é pouco exigente na forma como o tratam", garante, acreditando que é pela "maneira como diz o Evangelho, como traduz Jesus para a linguagem da atualidade, que é muito difícil, que o Papa Francisco o tem escolhido para todas as suas missões". E continua: "É um homem que aprofunda muito as questões humanas e da vida. Um homem que não se escandaliza perante os outros e pelos caminhos que fazem. É um homem que vai ao encontro dos outros. É um homem de grande abertura.".Tem quatro irmãos, o pai foi pescador em África, de onde trouxe muitas memórias.José Tolentino nasceu no Machico, na Madeira, a 15 de dezembro de 1965, mas cresceu no Lobito, Angola, onde viveu com a família até aos 11 anos e onde o pai era pescador. De África guarda na memória "uma sucessão de imagens felizes vividas praticamente na praia". E é desta altura que guarda a memória das suas primeiras leituras, "muitas delas feitas através da memória da minha avó, que me contava romances de cor", contou na entrevista ao DN, em 2011..Na memória guarda também a imagem do pai a ler Bíblia ou a fazer orações, imagens que o marcaram pela expressão da fé. De uma família "com um fundo religioso forte", aceita a presença de Deus muito cedo na sua vida e diz que por "Ele passaram questões importantes do meu próprio ser", porque "fé que não se questiona não faz sentido"..Regressa à Madeira em 1976 na ponte aérea que trazia os retornados. Em 1982 começa os estudos de Teologia. É nesta década que inicia a escrita com textos publicado no suplemento DN Jovem, alguns com pseudónimos Tiago Hulsenn, André Trieste e João Hogan, nomes, que como ele próprio explicou num dos seus textos, foram escolhidos de um barco, de uma cidade e de uma pintura, que, no fundo, mostravam o marinheiro do norte, o meridional errante e o ilhéu que há nele..Na altura, Tolentino Mendonça, num texto que escreveu para o DN Jovem, já dizia: "Não quero ser escritor, quero ser feliz." Mas é escritor, poeta, ensaísta, mas também um homem da cultura, do mundos, dos outros, um homem que parece ter encontrado nas palavras e na fé o sentido da vida..Mas já nessa altura, ainda com muito poucos anos de vida literária, explicava: "Um poeta não escreve por ser sábio ou mais iluminado, escreve porque vê, porque medita as coisas por dentro, porque tem uma alma onde as coisas se vão refugiar.".É esta a profundidade que os amigos lhe conferem, a alma e a sabedoria que já na altura se vislumbrava..Segue o seu percurso e é ordenado padre aos 24 anos, a 28 de julho de 1990. A seguir vai para Roma, fazer mestrado em Ciências Bíblicas, volta e ingressa na Universidade Católica como professor das disciplinas de Hebraico, Cristianismo e Cultura. Ali se doutorou em Teologia Bíblica e se tornou capelão, foi diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, nomeado para assessor cultural do Papa, arcebispo e cardeal a 5 de outubro, um dos cinco que Portugal tem agora no Vaticano, e três em condições elegíveis.."Um homem de Deus e da cultura".Este primeiro dia de setembro apanhou alguns desprevenidos, outros nem tanto. Esta nomeação era esperada, pelo percurso, pelos seus talentos e méritos intelectuais e pessoais. Para a diretora da Faculdade de Teologia da Católica, Ana Maria Jorge, não há outra forma de expressar o dia de hoje "como um dia muito feliz a título pessoal e institucional. Como amiga do Tolentino, fico muito feliz. Ele é um homem de Deus e da cultura e tenho a certeza de que irá pôr todos os seus talentos ao serviço da Igreja e da sociedade, que esta nova etapa da sua vida será muito prometedora para todos nós e para a Igreja em geral. A titulo institucional também é uma nomeação que me alegra muito, porque se trata de um antigo aluno da faculdade, de um professor muito querido e próximo dos alunos, apreciado pelas suas competências científicas, e também por ter sido diretor da faculdade antes da sua partida para Roma"..Para o bispo do Funchal, D. Nuno Braz, de quem é próximo, "D. Tolentino é uma referência maior da região" pela sua "profundidade religiosa, cultura e pensamento". Ao final da manhã, as reações começaram a chegar de todo o lado. Tolentino é o homem que muitos dizem conseguir reunir na mesma sala pessoas tão diferentes e "quase impensáveis", mas "ele é assim, um homem consensual"..O Presidente da República foi dos primeiros a manifestar a sua satisfação. Se tudo correr como o previsto, Portugal assistirá no próximo 10 de Junho ao discurso do cardeal D. Tolentino Mendonça. O convite já lhe tinha sido feito por Marcelo Rebelo de Sousa, e aceite..Pedro Mexia, poeta, cronista, crítico literário, assessor cultural do Presidente da República e amigo de Tolentino, espera que as novas funções não o impeçam de estar presente nas cerimónias do 10 de Junho e de discursar. "Conheci o nome José Tolentino Mendonça como poeta, antes de todas as outras dimensões. Foi um dos poetas mais marcantes da minha geração." Por isso, quando o conheceu efetivamente, mais tarde, como capelão da Católica, onde tirava o curso de Direito, a curiosidade de Pedro Mexia era grande. "Lembro-me de que na altura se começou a notar logo uma singularidade na maneira como chegava às pessoas. Às vezes, até às pessoas que não eram muito próximas da religião, mas ele tem esta capacidade de diálogo.".Mas o que os aproximou mesmo, conta, foi uma característica muito própria dele, na sua forma natural de olhar para as coisas: "A visão de que não tem de haver uma oposição entre a fé e o mundo." Se o tivesse de definir, Pedro Mexia fá-lo-ia, sem dúvida, também pela sua faceta dialogante. Ao ponto de dizer: "O Tolentino não se interessa tanto em pregar para os convertidos, se assim posso dizer, independentemente de todo o trabalho que tem feito na Igreja, em paróquias. Penso que ele tem um gosto particular em fazer pontes com pessoas que não têm as mesmas convicções ou a mesma visão do mundo, precisamente no sentido de perceber que afinal pode haver pontes de contacto, mesmo onde não se pensa.".Pedro Mexia fala de Tolentino, como o trata, com afeto e admiração. Para ele "é um dos poetas mais importantes da minha geração, portanto teria sempre admiração do ponto de vista literário. Aliás, até foi assim que o descobri". Mas não só. O facto de haver "uma pessoa desempoeirada como ele na Igreja durante a minha geração é muito, muito positivo"..Tolentino Mendonça é daquelas pessoas para quem quase não há substituto. Pedro Mexia comenta: "É claro que não há pessoas insubstituíveis, mas ele gerou uma aura de insubstituibilidade, e quando foi para Roma muitas pessoas lhe perguntavam: "E agora, padre Tolentino, como vai ser?"