O festival depois do festival
Depois da doçura crioula de Karyna Gomes embalar o final da tarde do segundo dia do Festival Músicas do Mundo, coube aos malianos Bamba Wassoulou Groove agarrar no público e, tendo como ponto de partida as sonoridades africanas, convidá-lo a seguir viagem com eles, numa jornada musical muito para além de qualquer fronteira física ou estético-estilística.
Assistir a um concerto deste coletivo, liderado pelo percussionista Bamba Dembélé, que nas décadas de 70 e 80 foi um dos mentores da Super Djata Band, é como entrar numa espécie de transe, em que o crescendo psicadélico guia o ouvinte até uma explosão final de ritmos africanos.
De repente, de uma ponta à outra de Porto Covo, ninguém está sossegado. Da movimentada frente de palco às filas para comer e beber, até quem simplesmente se passeia pela feira de artesanato, todos se deslocam ao ritmo da música, numa bamboleante ginga que transforma a aldeia numa imensa pista de dança.
E quando parecia impossível bater isto, eis que surge no palco, acompanhado dos seus Seletores de Frequência, o carioca Bernardo Santos, mais conhecido por Bnegão, qual encarnação conjunta entre Tim Maia e Chico Science para dar início a uma festa "funk até ao caroço".
Antigo vocalista dos seminais Planet Hemp, o grupo que nos anos 90 uniu a tradição do samba com o punk e o hip-hop, Bnegão faz jus ao estatuto de figura de proa da vanguarda musical brasileira, saltitando entre estilos, ritmos e épocas com o mesmo à vontade com que toda a gente dança à sua frente.
Seja o rap que lhe sai a toda velocidade da boca, entre palavras de ordem contra a atual situação política do Brasil ("quando eu disser fora, vocês gritam Temer"), ou na recriação de clássicos como Fita Amarela, um clássico dos anos 30, do lendário compositor de samba Noel Rosa.
Acabaria em grande com um bossanova hardcore a fazer lembrar os Sepultura, antes de abandonar o palco, perante um enorme aplauso, com um dub reggae em que o nome do atual presidente do Brasil veio novamente à baila, à mistura com expressões como "golpe de estado" e "filho da puta".
Mas o público queria mais, os músicos também e juntaram-se todos no largo, numa batucada que durou noite fora. No meio da multidão viam-se muitas das caras que nestes dois primeiros dias haviam passado pelo palco, como os brasileiros Graveola. E entre pandeiretas, harmónicas, pífaros e percussões das mais variadas origens, todos se uniram num outro festival, em que as músicas dos muitos e diferentes mundos aqui presentes se tornaram, por momentos, numa só.