O fenómeno silencioso que calou os americanos nos cinemas
O cinema de "alta fidelidade" de ficção-científica e de terror americano nunca recuperou da herança pesada e da fasquia alta que Aliens, de James Cameron, nos anos 1980 impôs. É preciso chegar até aos dias de hoje e a um filme como este Um Lugar Silencioso, segunda realização do ator John Krasinski, para assistirmos a um milagre.
Um thriller que recupera a intensidade da vertigem do medo e que nos faz olhar para o género com novo olhar. Como se Hitchcock dirigisse um argumento com aliens numa proposta de décor que evoca Pássaros e Psico (não falta uma banheira...). Com efeito, esta surpresa é de tal forma estonteante que ultrapassa todo o hype em seu redor - fenómeno nas bilheteiras, aclamação dos críticos e já burburinho para os Óscares.
A Quiet Place, produzido sem muita publicidade e com um orçamento menor, já ultrapassou os 150 milhões de faturação nos EUA e prepara-se para bater recordes do género. O seu boca-a-boca com os espectadores é tão forte que o filme chegou mesmo a subir no top dos mais vistos na sua terceira semana, ultrapassando o milionário Rampage - Fora do Controlo, um suposto blockbuster com Dwayne Johnson.
Mesmo em Portugal foi alvo de um lançamento que apostou em sessões de antecipação, as chamadas "sneak previews" para se começar a espalhar a palavra. O êxito é de tal forma colossal que a Paramount já encomendou uma sequela com urgência.
A ação situa-se numa quinta americana depois de um ataque de criaturas extraterrestres cegas que dizimaram a maioria da população mundial. Os poucos sobreviventes vivem em pequenas comunidades e protegem-se com o silêncio máximo - estas famílias perceberam que as criaturas são cegas e apenas atacam através do ruído que os humanos emitem.
A família protagonista, os Abbott, traumatizada pela morte de um dos filhos, inventou também um sistema de luzes de alerta, sobretudo tendo em conta a chegada de um bebé. Os Abbott estão sempre em alerta e atentos à presença destas criaturas esfomeadas, descritos pela imprensa na invasão mortífera como anjos da morte.
A Quiet Place, quase sem diálogos e muitas vezes sem som (uma das filhas dos Abbott é surda muda e quando a câmara passa para ela temos só silêncio) criou um outro fenómeno: há relatos que as muitas sessões esgotadas produzem nas salas um silêncio estarrecedor, capaz de fazer com que as pipocas fiquem em suspenso. Em suma, o poder do suspense criado por Krasinski é tão forte que o silêncio na tela cria o tão utópico silêncio do espectador, algo verdadeiramente improvável nos dias de hoje.
E a mise-en-scéne do ator de Terra Prometida joga com delicadeza nas cadências do silêncio versus ruído, trabalhando a banda-sonora de forma cirúrgica, mesmo quando é para encenar o verdadeiro tema do filme: a dissolução familiar. Uma encenação que convoca um rigor classicista, nomeadamente na mãe coragem de Emily Blunt, personagem que reinventa o lugar do peso materno no cinema moderno de Hollywood. A mãe que protege os seus anjos dos anjos negros numa fábula de medo que é também um espelho desta América com pôr-do-sol dourado mas completamente amordaçada.
Aqui sabe bem contermos a respiração e termos medo, aquele "muito medo" que Cameron tinha trazido em Aliens. E estes aliens também metem um pavor paralisante. O tal medo silencioso, sem ruídos. John Krasinski restituiu o silêncio ao espetáculo americano.
O mais incrível e irónico nesta surpresa é ser produzida por Michael Bay, de Transformers e, precisamente, o responsável pelo "barulho" nos blockbusters.