O fenómeno que rendeu 760 milhões à globo

A novela que deixou o Brasil colado ao pequeno ecrã e ligado à internet deixa um legado sem precedentes. Do êxito comercial à inovação da produção, 'Avenida Brasil', que terminou a semana passada no seu país de origem, marca um ponto de viragem na forma como vemos (a) novela. Descubra as razões que puseram os nomes Carminha, Nina e Divino nas bocas do mundo.
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Numa altura em que o Brasil ainda vive o "luto" do final de Avenida Brasil, novela vista, em média, por 46 milhões de telespectadores por episódio e que alcançou 80 milhões no derradeiro capítulo, os números continuam a chegar... e a impressionar. Segundo dados divulgados pela revista Exame, a produção custou à TV Globo 30,7 milhões de euros. Cada um dos 179 episódios custou, em média, 172 mil euros. Com 30 segundos de publicidade por cada capítulo (na Globo, tiveram a duração total de uma hora e 15 minutos), e custando 204 mil euros anunciar neste horário, a publicidade veiculada no intervalo da novela cobriu por completo os custos da produção. Para a TV Globo, e como adiantou a revista Forbes, o encaixe financeiro da novela escrita por João Emanuel Carneiro foi de uns astronómicos 760 milhões de euros. "Avenida Brasil é novela mais bem-sucedida comercialmente da história da televisão brasileira", garante a Forbes.

Por cá, a SIC transmite hoje o 24.º episódio da trama. Do lado de lá do Atlântico, há uma semana, o país parou para assistir ao final de Avenida Brasil. As autoridades temiam um apagão, devido ao consumo excessivo de eletricidade dos aparelhos que, às nove da noite, estavam sintonizados para transmitir o tão esperado desfecho da história protagonizada pelas duas vilãs/heroínas (Carminha e Nina, interpretadas por Adriana Esteves e Débora Falabella) e, mais importante, pela classe média brasileira. "Mais do que um sucesso caracterizado pela audiência, é um fenómeno", explica Maria Immacolata Vassallo de Lopes.

A professora da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva (Obitel) estuda o fenómeno da telenovela há mais de duas décadas e afirma que a vitória alcançada pela trama escrita por João Emanuel Carneiro se deve também ao bom momento económico e social que o país atravessa. "Acho que o Brasil se estava a preparar para ver esta novela. Avenida Brasil chega num momento em que há uma convergência de fatores responsáveis por este fenómeno", começa por explicar Maria Immacolata. Para além da história em si, com uma "narrativa descontínua e fragmentada", um "ritmo intenso", o perfil pouco habitual das personagens, cheias de "dubiedade e ambiguidade", a professora da USP ressalta as condições que se foram gerando no país para que as aventuras e desventuras de uma órfã e da sua madrasta malvada tenham conquistado os brasileiros.

"O que o Brasil está a viver está personificado na figura do Tufão [Murilo Benício] e na comunidade do Divino [bairro fictício situado na zona norte do Rio de Janeiro, considerado mais popular, em oposição à zona sul, onde moram as classes mais abastadas]. Ele é um jogador de futebol de sucesso, que é do subúrbio, que enriquece, mas que não sai do lugar onde se formou e tem raízes. Há uma identidade popular que é mantida", explica a coordenadora do Obitel.

Zona norte, empregadas e classe média: esta 'Avenida' é o Brasil

Da Austrália ao Reino Unido, dos EUA a França, o final de Avenida Brasil teve lugar de destaque nos media internacionais. BBC, The Guardian, Forbes, The Washington Post contaram a peripécia do comício eleitoral cancelado pela "presidenta" Dilma Rousseff, cujo bom senso lhe fez perceber que fazer atividade política à hora do casamento de Nina e Jorginho e da resposta à pergunta "Quem matou o Max?" não era uma boa ideia . "É bom o facto de os media internacionais terem começado a falar das novelas. Os intelectuais voltaram-se para este fenómeno para perceber o que é este produto", reconhece Maria Immacolata Vassallo de Lopes. Para percebermos a geografia de Avenida Brasil é preciso compreendermos a lógica socioeconómica do Rio de Janeiro. "É uma grande mais-valia a novela passar-se no subúrbio. Geralmente, o núcleo protagonista está na zona sul e os secundários vão parar algures no subúrbio. Aqui, em Portugal, não é muito diferente. As nossas novelas também se passam em Cascais, Quinta da Marinha, Estoril, e depois há as zonas menos nobres da Grande Lisboa, onde vivem os menos ricos", explica Rui Vilhena. O autor de êxitos da TVI como Tempo de Viver e Olhos nos Olhos diz que o segredo do êxito da trama escrita por João Emanuel Carneiro está no facto de o "público gostar muito de fazer de detetive" e no estilo cinematográfico, a fazer lembrar as séries norte-americanas. "A luz fica mais bonita e parece cinema. Sem dúvida que é mais caro, mais trabalhoso e demora mais tempo, mas o produto final não tem comparação possível. E torna-se mais fácil de exportar um produto", prevê Vilhena.

Até chegar a esta Avenida, dificilmente veríamos uma cabeleireira recusar-se a abrir um salão na zona mais in do Rio de Janeiro só porque os vizinhos em Ipanema não se conhecem e jamais veríamos uma empregada doméstica tentar trocar as voltas à patroa e tornar-se, ao longo da trama, elemento essencial para o desenrolar da intriga. Cacau Protásio, que dá vida à "empreguete" Zezé, parceira da maldade de Carminha, explica quão revolucionário foi João Emanuel Carneiro ao tornar o staff da casa de Tufão mais do que simples semifigurantes. "A minha personagem não está só ali para abrir a porta. As empregadas, hoje, têm muito mais espaço na televisão brasileira [a novela de acesso ao prime timeCheias de Charme, protagonizada por Taís Araújo, que contou a história de três empregadas que conseguem subir na vida e que terminou em setembro, abriu caminho]. Isso aproxima as patroas, as empregadas e até o público masculino, que está sendo absurdo [muito] nesta novela", explica a atriz.

Em entrevista ao programa de informação Globo Repórter, João Emanuel Carneiro confessou que "tinha muita vontade de fazer uma novela toda ela suburbana. "Quis inverter os padrões que ditam que a zona sul é o lugar onde se passa a novela e o subúrbio é o núcleo pobre, adjacente. Aqui, foi o contrário. O subúrbio foi o núcleo central e a zona sul a sobremesa. A cultura carioca ultimamente é muito forte no subúrbio e tem-se impondo na zona sul", explicou o autor, que teve como principal inspiração o clássico O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Carneiro quis, para lá da temática da vingança que percorre toda a trama, mostrar uma outra realidade que ocorre nas classes em ascensão do seu país natal: o ascendente feminino e a importância deste na organização das comunidades suburbanas do Rio de Janeiro. "Uma coisa que tenho observado no subúrbio é que as mulheres tem vindo a ser cada vez mais dominantes", explicou o homem responsável pelo fenómeno de audiências que é Avenida Brasil.

Facebook e Twitter lado a lado com a TV

A página oficial de Facebook de Avenida Brasil tem, neste momento, 432 mil fãs. O último post, uma imagem com a frase "Valeu Brasil!", colocada no sábado, um dia depois de o último episódio ser emitido, bateu todos os recordes: foi partilhada 5195 vezes, teve 1262 comentários e 8950 "gosto". No Twitter, a média de menções a palavras-chave relacionadas com a novela ("Carminha", "Nina", "oi oi oi" foram as mais utilizadas) foi de seis mil por episódio, tendo esse valor escalado até às 30 mil no episódio em que Carminha foi descoberta. De acordo com o site de análise de dados das redes sociais, durante o último episódio da novela, a palavra "Carminha" teve 30 mil menções e "Nina" quase 50 mil.

José de Abreu, o Nilo da trama, foi um dos atores mais ativos na rede social durante Avenida Brasil. O ator, apoiante de Dilma Rousseff, utiliza a sua conta de Twitter maioritariamente para comentar assuntos da atualidade política, mas rendeu-se à forte interação com os seus fãs quando a sua personagem se tornou um fenómeno. "Para ver a novela é muito interessante porque tem-se um feedback imediato, sem censura. É até mais importante do que os focus groups que a Globo faz", explicou José de Abreu, que tem 65 876 seguidores na rede social.

Para além de revolucionário, o caminho que Avenida Brasil fez nas redes sociais foi um trilho de ida e volta. A produção da novela lançou desafios, teasers, provocou o internauta/telespectador. De volta, recebeu as opiniões, traduzidas não só nas formas mais básicas de interação (comentários, "gosto", partilhas), mas também a produção de conteúdos caseiros relacionados com a novela, como aconteceu com os cartazes virtuais keep calm inspirados nas frases das protagonistas, os vídeos do YouTube em que músicas funk tinham como refrão tiradas sonantes das personagens, como aconteceu com o hit da "empreguete" Zezé, "Eu quero ver tu me chamar de amendoim".

Maria Immacolata Vassallo de Lopes considera que "o público apropriou-se da novela". "A interação entre a televisão e as redes sociais é fantástica! Fala-se de telenovela nas redes sociais enquanto se está a assistir, mas também se faz produto sobre essa telenovela e coloca-se no YouTube. Feito por quem? Pelo público! É uma mistura, a televisão manda para a rede, a rede manda para a televisão. É a chamada convergência transmediática, aproveitada pelos produtos comunicativos", explica a professora da USP. Mais uma vez, e como faz questão de frisar a especialista, nada disto seria possível há cinco anos, quando o acesso generalizado à internet ainda era uma miragem no Brasil. "Como as tecnologias ficaram mais baratas e o poder de consumo aumentou, as pessoas têm acesso não só à internet no computador, mas também à Smart TV [com box]." Olhar para os telespectadores não como recetores mas como parte do produto é, cada vez mais, o futuro do entretenimento televisivo, como afiança Rui Vilhena. "Não dá para ignorar as redes sociais. Os autores e os canais que não utilizarem esses meios vão ficar para trás", prevê o autor. Vilhena explica também que o contacto próximo de atores e autores com os fãs cria um laço capaz de alavancar audiências. "Antes, os atores viviam num pedestal distante do público. Agora, há um contacto, uma convivência virtual com esse artista, o que cria um falso relacionamento de intimidade. Mas isso reflete-se, sem dúvida, em números, cria fidelidade. As pessoas sentem-se mais próximas do artista, da obra."

A adesão dos brasileiros a Avenida Brasil fora do pequeno ecrã foi tal que, no episódio em que Nina perde as fotos que comprovam a traição de Carminha com Max (a personagem não as tinha em suporte digital), gerou-se uma avalanche de comentários, entre o jocoso e o insultuoso, sugerindo que a protagonista devia ter consigo uma pen drive com as fotografias, cenário mais lógico em 2012 do que ter as imagens apenas em suporte de papel, como aconteceu. O autor da novela, que curiosamente não tem página de Twitter, disse em entrevista ao Facebook oficial de Avenida Brasil que os reparos dos fãs o iam fazer ficar mais atento às novas tecnologias. "Bem, se está a dizer-me que a história das fotos criou mais burburinho para a novela, será que vale mesmo deixar de ser um analfabeto virtual (risos)? Brincadeiras à parte, sei que tenho de mudar, mas continuo a achar que numa ficção é permitido criar licenças dramatúrgicas. É ficção [risos]!", brincou João Emanuel Carneiro.

O legado de 'Avenida Brasil'

Pode não ser "tudo culpa da Rita", mas, se o futuro da teledramaturgia brasileira (e não só) for diferente, é certamente por culpa de Avenida Brasil. O patamar, não só o das audiências mas também da exigência do público, está mais alto. Salve Jorge, novela da autoria de Glória Perez protagonizada por Rodrigo Lombardi, Cláudia Raia, Murilo Rosa e Giovanna Antonelli, e sucessora da trama de João Emanuel Carneiro, está no lugar onde poucos desejavam estar. O primeiro episódio registou 35 pontos de média, ainda assim, dois pontos abaixo da estreia de Avenida Brasil. Rui Vilhena desvaloriza as comparações e alerta para o facto de o fator autoral ter grande importância no Brasil. "A Globo tem uma coisa muito boa. Os autores têm tipos completamente diferentes. Se esta fosse outra novela policial, talvez fosse ingrato, mas como é uma novela completamente diferente, não", explica o guionista, acrescentando: "Aqui, em Portugal, às vezes, ficamos com a sensação de que estamos sempre a ver a mesma novela. Pelo menos, é uma das críticas que mais ouço", aponta Vilhena.

"Não dá para esperar uma Avenida Brasil de Glória Perez", adverte Maria Immacolata Vassallo de Lopes. A especialista em ficção televisiva recusa comparar os dois produtos de ficção, mas assinala que Avenida Brasil foi um marco histórico. "A novela conseguiu captar o momento que estamos a viver e por isso se tornou esse fenómeno, à semelhança do que Roque Santeiro [1985] e Vale Tudo [1988] fizeram no seu tempo", explica Maria Immacolata.

Com dois milhões de fãs no Facebook e 110 mil seguidores no Twitter, Gina Indelicada, personagem fictícia criada por Ricck Lopes, um estudante de Publicidade de 19 anos, e que se tornou uma espécie de comentadora oficial de Avenida Brasil nas redes sociais, está triste. "Não vou assistir a Salve Jorge em luto por Avenida Brasil". Parece exagero, mas não é, como constata a coordenadora do Obitel. "O luto do público tem que ver com o facto de as pessoas terem convivido oito meses com aquelas personagens que lhes entraram em casa. Vamos ter saudades intelectuais, da falta que vai fazer Avenida Brasil. Mas acabou."

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