Não foi uma escolha. Mário Marques tinha 13 anos quando se sentou pela primeira vez a moldar vidro ao maçarico. Não se assustou com a chama. Foi o pai, de quem herdou a alcunha que o acompanha até hoje, Macatrão, que o ensinou a arte de maçariqueiro. Aos 14, começou a trabalhar numa fábrica na Marinha Grande onde se faziam ampolas para laboratório. "Trabalhava numa bancada ao lado de chefes de família e ganhava tanto ou mais do que eles, porque tinha mais ligeireza nas mãos", lembra..Podia ter sido futebolista. Aos 16 anos, era estrela do Marinhense. "Joguei contra os Cinco Violinos", conta, orgulhoso. "Era eu no meio da velharada toda." Manuel Soeiro, que tinha sido jogador do Sporting e na altura era treinador, quis levá-lo para Lisboa. "Mas o maestro Correia Moita viu-me a cantar nos teatrinhos da igreja e convidou-me para ser crooner da sua orquestra. Como na época não se ganhava dinheiro a jogar à bola, eu preferi ficar a cantar à frente da orquestra, com um lacinho ao pescoço, um casaco branco de gola de rebuço e as meninas todas a olharem para mim." Ri-se com essa memória. Cantou no Clube dos Oficiais de Leiria e no Hotel das Termas de Monte Real, no verão corria toda a região, da Nazaré a Peniche..Por uns tempos correu-lhe bem a vida, entre o vidro e as cantorias. Até que decidiu ir para o Brasil. Teve "uns problemas com a PIDE", que prefere não especificar, e tinha vontade de ganhar mais dinheiro. "Era muito difícil viver aqui", justifica. Tinha 28 anos. "O meu avô estava no Brasil e eu achava que ele era rico, pensei ir lá gastar o dinheiro dele." Foi a 19 de fevereiro de 1959 e levou consigo a arte de maçariqueiro, que era pouco conhecida lá. "Comecei a trabalhar e como era novidade vendia muito bem.".Podia ter sido cantor. Assim que chegou a São Paulo integrou-se na comunidade portuguesa. A cantora Irene Coelho, filha de portugueses da região de Leiria, foi-lhe apresentada num sábado à noite, num jantar no restaurante Sorriento. Ela ficou rendida à sua voz e não tardou a colocá-lo no seu programa de rádio, Melodias Portuguesas: "Ela levou-me para fazer um ensaio com os guitarristas e quando subi ao palco ela diz: "Acaba de chegar de Portugal Rolando Marques." Rolando é o meu nome do meio e assim fiquei com esse nome artístico. Cantei com ela quase um ano." De dia, trabalhava no vidro, a fazer miniaturas, à noite cantava em shows de boîtes, como a Imperador, madrugadas fora. "Chegava a casa muito cansado. Era uma vida mundana. E eu vi que aquilo não era para mim.".Chamou o pai, a mãe e o irmão para trabalharem juntos naquilo que melhor sabiam: o vidro. Tiveram uma fábrica de bijuteria e depois outra de vidro para iluminação. Chegaram a ter 284 funcionários. "Eu e o meu pai ensinámos muitos garotos a trabalhar o vidro", conta Mário Marques. "Depois veio a crise do óleo e das matérias- primas." Em meados dos anos 70, deixou a produção e tornou-se assessor, levando todo o seu know-how a fábricas como a Vitrais Santa Terezinha, a Vidraçaria Kennedy ou vidraria Bandeira. Podia estar rico, se a vida não lhe tivesse pregado várias rasteiras, incluindo alguns investimentos menos bons e umas despesas inesperadas com os seus seis filhos. A 19 de fevereiro de 2001, exatamente 42 anos depois de ter deixado Portugal, Mário e a mulher apanharam o avião para Lisboa e vieram instalar-se - outra vez - na região da Marinha Grande..Não foi uma escolha. Não tardou muito a voltar a sentar-se ao maçarico. Transformou a garagem numa oficina. "Gosto de estar entretido aqui, para não ficar ocioso em frente da televisão e do computador", explica, com um sotaque que ainda tem laivos do Brasil. Tem 87 anos e é reformado, a mão esquerda já lhe treme um pouco quando segura os pequenos tubinhos de vidro em frente da chama, mas ainda passa ali muito do seu tempo. "Faço tudo o que se pode imaginar na arte do maçarico", conta. O maçarico é aquele instrumento que junta o gás propano e o oxigénio para produzir uma chama azulada com que se trabalha o vidro borossilicato, que é um vidro especial, com que se produzem, por exemplo, os instrumentos de laboratório. Mário tem caixas cheias de tubinhos de vidro de vários tamanhos com que cria, em poucos minutos, miniaturas de animais. Desde um simples gatinho a complexas araras coloridas, ou até imagens de Cristo na cruz: "Estou sempre a criar peças novas.".Neste momento, Mário Marques é o único artesão que produz ampulhetas para o Depósito da Marinha Grande, em Lisboa. Pode chegar a fazer cem a 200 ampulhetas por ano, não mais. "Só faço quando há encomendas, não compensa fazer de outra forma. Existe uma concorrência muito grande da China e vendem-nas a preço de banana", queixa-se. As ampulhetas que se vendem nessas lojas podem ser baratas mas as ampulhetas de Mário Macatrão são únicas: "Nenhuma sai igual, são sempre diferentes.".Para um artesão experiente, fazer uma ampulheta é uma tarefa bastante fácil. Primeiro é preciso soprar o tubo para criar as duas bolhas da ampulheta e o pequeno orifício no meio, depois há que colocar a areia com cuidado, através de um funil. E, por fim, fechar os terminais. O suporte de madeira é feito numa carpintaria também na Marinha Grande. "O segredo é a areia. Tem de ser areia de quartzo, bem lavada e bem seca, para tirar todas as impurezas e a goma", garante. "O tempo da ampulheta depende da quantidade de areia e do tamanho do orifício. Eu faço a olho. Já sei mais ou menos como tenho de fazer para durar um minuto." A verdade é que o tempo da ampulheta não é assim tão importante porque, hoje em dia, estes são sobretudo objetos de decoração ou brinquedos para as crianças. Já ninguém conta o tempo na areia que escorre na ampulheta. "As pessoas gostam de ter ampulhetas porque são objetos bonitos e fascinantes, só isso", admite Mário. Ficar a olhar para a areia a cair é quase como ver o tempo a passar. "Se pudéssemos fazer o tempo voltar atrás como quem vira uma ampulheta... Isso é que era."
Não foi uma escolha. Mário Marques tinha 13 anos quando se sentou pela primeira vez a moldar vidro ao maçarico. Não se assustou com a chama. Foi o pai, de quem herdou a alcunha que o acompanha até hoje, Macatrão, que o ensinou a arte de maçariqueiro. Aos 14, começou a trabalhar numa fábrica na Marinha Grande onde se faziam ampolas para laboratório. "Trabalhava numa bancada ao lado de chefes de família e ganhava tanto ou mais do que eles, porque tinha mais ligeireza nas mãos", lembra..Podia ter sido futebolista. Aos 16 anos, era estrela do Marinhense. "Joguei contra os Cinco Violinos", conta, orgulhoso. "Era eu no meio da velharada toda." Manuel Soeiro, que tinha sido jogador do Sporting e na altura era treinador, quis levá-lo para Lisboa. "Mas o maestro Correia Moita viu-me a cantar nos teatrinhos da igreja e convidou-me para ser crooner da sua orquestra. Como na época não se ganhava dinheiro a jogar à bola, eu preferi ficar a cantar à frente da orquestra, com um lacinho ao pescoço, um casaco branco de gola de rebuço e as meninas todas a olharem para mim." Ri-se com essa memória. Cantou no Clube dos Oficiais de Leiria e no Hotel das Termas de Monte Real, no verão corria toda a região, da Nazaré a Peniche..Por uns tempos correu-lhe bem a vida, entre o vidro e as cantorias. Até que decidiu ir para o Brasil. Teve "uns problemas com a PIDE", que prefere não especificar, e tinha vontade de ganhar mais dinheiro. "Era muito difícil viver aqui", justifica. Tinha 28 anos. "O meu avô estava no Brasil e eu achava que ele era rico, pensei ir lá gastar o dinheiro dele." Foi a 19 de fevereiro de 1959 e levou consigo a arte de maçariqueiro, que era pouco conhecida lá. "Comecei a trabalhar e como era novidade vendia muito bem.".Podia ter sido cantor. Assim que chegou a São Paulo integrou-se na comunidade portuguesa. A cantora Irene Coelho, filha de portugueses da região de Leiria, foi-lhe apresentada num sábado à noite, num jantar no restaurante Sorriento. Ela ficou rendida à sua voz e não tardou a colocá-lo no seu programa de rádio, Melodias Portuguesas: "Ela levou-me para fazer um ensaio com os guitarristas e quando subi ao palco ela diz: "Acaba de chegar de Portugal Rolando Marques." Rolando é o meu nome do meio e assim fiquei com esse nome artístico. Cantei com ela quase um ano." De dia, trabalhava no vidro, a fazer miniaturas, à noite cantava em shows de boîtes, como a Imperador, madrugadas fora. "Chegava a casa muito cansado. Era uma vida mundana. E eu vi que aquilo não era para mim.".Chamou o pai, a mãe e o irmão para trabalharem juntos naquilo que melhor sabiam: o vidro. Tiveram uma fábrica de bijuteria e depois outra de vidro para iluminação. Chegaram a ter 284 funcionários. "Eu e o meu pai ensinámos muitos garotos a trabalhar o vidro", conta Mário Marques. "Depois veio a crise do óleo e das matérias- primas." Em meados dos anos 70, deixou a produção e tornou-se assessor, levando todo o seu know-how a fábricas como a Vitrais Santa Terezinha, a Vidraçaria Kennedy ou vidraria Bandeira. Podia estar rico, se a vida não lhe tivesse pregado várias rasteiras, incluindo alguns investimentos menos bons e umas despesas inesperadas com os seus seis filhos. A 19 de fevereiro de 2001, exatamente 42 anos depois de ter deixado Portugal, Mário e a mulher apanharam o avião para Lisboa e vieram instalar-se - outra vez - na região da Marinha Grande..Não foi uma escolha. Não tardou muito a voltar a sentar-se ao maçarico. Transformou a garagem numa oficina. "Gosto de estar entretido aqui, para não ficar ocioso em frente da televisão e do computador", explica, com um sotaque que ainda tem laivos do Brasil. Tem 87 anos e é reformado, a mão esquerda já lhe treme um pouco quando segura os pequenos tubinhos de vidro em frente da chama, mas ainda passa ali muito do seu tempo. "Faço tudo o que se pode imaginar na arte do maçarico", conta. O maçarico é aquele instrumento que junta o gás propano e o oxigénio para produzir uma chama azulada com que se trabalha o vidro borossilicato, que é um vidro especial, com que se produzem, por exemplo, os instrumentos de laboratório. Mário tem caixas cheias de tubinhos de vidro de vários tamanhos com que cria, em poucos minutos, miniaturas de animais. Desde um simples gatinho a complexas araras coloridas, ou até imagens de Cristo na cruz: "Estou sempre a criar peças novas.".Neste momento, Mário Marques é o único artesão que produz ampulhetas para o Depósito da Marinha Grande, em Lisboa. Pode chegar a fazer cem a 200 ampulhetas por ano, não mais. "Só faço quando há encomendas, não compensa fazer de outra forma. Existe uma concorrência muito grande da China e vendem-nas a preço de banana", queixa-se. As ampulhetas que se vendem nessas lojas podem ser baratas mas as ampulhetas de Mário Macatrão são únicas: "Nenhuma sai igual, são sempre diferentes.".Para um artesão experiente, fazer uma ampulheta é uma tarefa bastante fácil. Primeiro é preciso soprar o tubo para criar as duas bolhas da ampulheta e o pequeno orifício no meio, depois há que colocar a areia com cuidado, através de um funil. E, por fim, fechar os terminais. O suporte de madeira é feito numa carpintaria também na Marinha Grande. "O segredo é a areia. Tem de ser areia de quartzo, bem lavada e bem seca, para tirar todas as impurezas e a goma", garante. "O tempo da ampulheta depende da quantidade de areia e do tamanho do orifício. Eu faço a olho. Já sei mais ou menos como tenho de fazer para durar um minuto." A verdade é que o tempo da ampulheta não é assim tão importante porque, hoje em dia, estes são sobretudo objetos de decoração ou brinquedos para as crianças. Já ninguém conta o tempo na areia que escorre na ampulheta. "As pessoas gostam de ter ampulhetas porque são objetos bonitos e fascinantes, só isso", admite Mário. Ficar a olhar para a areia a cair é quase como ver o tempo a passar. "Se pudéssemos fazer o tempo voltar atrás como quem vira uma ampulheta... Isso é que era."