O fado já não é só nosso. E ainda bem.
Tenho um defeito: derreto-me quando confrontada com o amor alheio por Portugal. Perco o discernimento e o meu ego insufla de tal modo que pareço eu própria ser um marinheiro português que acabou de descobrir o caminho marítimo para a Índia - com a vantagem de eu ter a noção exata da importância do meu feito. Uma série de circunstâncias, dir-se-ia um certo fado, levou-me no outro dia à noite, à Bela, casa de fados em Alfama. Ali descobri os Fado Novato: três americanos fascinados com Portugal e com o fado, tanto que até tinham um grupo, gravaram um disco e vieram a Lisboa investigar tudo sobre esta nova paixão que se tornou opção de carreira.
Com o espírito que nunca deve abandonar um jornalista, nem mesmo às duas da manhã numa casa de fados, fiz a Shay, Beau, Jordan e Giordano, quatro americanos no Missouri, as perguntas cujas respostas satisfariam a minha curiosidade e dariam origem a uma segunda entrevista, mais séria, e à reportagem que publicamos esta semana na Notícias Magazine . Pormenores à parte, o que vi, na receção àquele grupo naquela noite na Bela foi o mesmo sentimento que eu tive - embora eu o tenha sempre, e ali, naquela casa de fado, estes americanos estivessem perante uma plateia de especialistas... A pronúncia titubeante de Shay, a fadista, tornou-se a centelha do nosso orgulho, não só meu mas de toda a gente naquela sala - fez-nos perceber que estávamos perante um grupo de gente estrangeira rendida ao que de mais português existe.
Estes americanos são a prova do poder do fado. Como música em si mesmo - a sua qualidade conquistou estes músicos profissionais que vêm de um dos berços da melhor música do mundo, Kansas City, segunda capital do jazz nos Estados Unidos, e que agora estão em Lisboa a ter lições de guitarra portuguesa. E como veículo: eles chegaram a Portugal através do fado, não sabiam nada do país quando foram agarrados por esta melodia, e, através dela e das letras que foram traduzindo para inglês, foram descortinando um país sobre o qual valia a pena conhecer mais. Se o quiséssemos ter feito melhor, através de políticas de divulgação e imagem, de propósito, não conseguiríamos chegar tão longe. E tão fundo.
Já aqui na Notícias Magazine falámos muitas vezes de Lisboa e de como a cidade está na moda. Nas palavras destes quatro americanos - os três que fazem parte do grupo musical e o produtor que os filma e fotografa, documentando toda a viagem - voltamos a perceber o potencial desta cidade ribeirinha e ancestral. Nas palavras escritas por Shay, que publicamos esta semana, apenas três dias depois de ter chegado, estão vários manuais de como devemos divulgá-la para retirar dela o que de melhor tem.
Já todos conhecemos os japoneses que adoram fado, as espanholas que o cantam, os brasileiros que o tocam. A diferença destes americanos é a seriedade e potencial do projeto que têm. Porque, à atenção de quem de direito, há também a ideia - muito séria - que estes quatro americanos têm de vir a fazer uma casa de fado em Kansas City. Já têm o projeto - que não seria apenas uma casa de fado igual às outras mas que serviria para «divulgar o fado ao público em inglês». Eles próprios já projetam as suas letras traduzidas nas paredes dos clubes onde cantam. E têm parte do financiamento - uma parte do que garantiram para vir a Lisboa, durante um mês. Querem fazer workshops , letras em inglês, ensinar o bê-á-bá de uma música que eles consideram, desde o início, dever ser mais divulgada. E que sejam americanos a fazê-lo não nos deve deixar tristes, mas antes contentes. Orgulhosos, mais uma vez. Porque o fado já não é nosso, é do mundo.