O Fado de Nápoles e Elena Ferrante na f(r)esta do cinema italiano

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Encerra hoje, em Lisboa, a Festa do Cinema Italiano, que decorreu em simultâneo em várias cidades portuguesas e, em breve, irá para Angola, Moçambique, Brasil. Um dos temas em foco nesta 10.ª edição foi Nápoles, cidade que daria pano para mangas em muitos festivais monotemáticos, mas que aqui se limitou a uma sessão de curtas de jovens cineastas napolitanos, à antestreia da 2.ª temporada da série Gomorra (já adquirida pela Rtp2), a um concerto de Mísia na insólita veste de cantora napolitana e a uma homenagem à grande romancista Elena Ferrante com debates, fotografias, a exibição do filme L"amore molesto (que Mario Martone extraiu do primeiro romance de Ferrante) e uma leitura encenada a cargo dos atores André Gago, Carmen Santos, Joana Brandão e Lara Matos (com os quais tive o prazer de colaborar na seleção dos textos).

Um dos excertos da tetralogia A Amiga Genial fala do desconforto em que nos deixa o amor por uma cidade tão bela e complicada como Nápoles. A antiga capital do reino do Sul de Itália "era a grande metrópole europeia onde com maior clareza a confiança na tecnologia, na ciência, no desenvolvimento económico, na bondade da natureza, na história que nos leva necessariamente para melhor, na democracia, revelara com grande antecedência ser totalmente desprovida de fundamento", escreve Ferrante em História da Menina Perdida. Pois se o canto de Mísia ou a projeção das fotografias de Sergio Sciammarella, sob o título Napolisboa, desvelam afinidades entre duas tradições culturais, desde a arquitetura melódica à arquitetura urbana, há qualquer coisa que talvez escape a todo o tipo de comparativismo. "Ter nascido naquela cidade - continua Ferrante - serve para uma única coisa: saber desde sempre, quase por instinto, aquilo que hoje, entre mil senãos, começam a afirmar todos: o sonho de progresso sem limites é na realidade um pesadelo cheio de desumanidade e de morte" (trad.: de Margarida Periquito, ed. Relógio d"Água).

É a Nápoles que se vê na série Gomorra, título bíblico e catastrófico que ecoa o nome da máfia regional, chamada camorra, palavra não desconhecida da língua portuguesa, visto que já Álvaro de Campos, num poema em que parece querer comentar, com a blague do costume, um protesto de comerciantes, diz que escolher entre um aumento de impostos e um aumento de preços é como escolher entre a máfia e a camorra.

A Gomorra não bíblica, mas atual, é a cidade onde se trocam armas, drogas e votos; onde um homicídio é deliberado, como num debate parlamentar, entre representantes dos gangues; onde a ordem pública nasce da desordem e não existe o bem e o mal, mas apenas diversos matizes do mal, que até pode vir a desembocar em êxitos menos maus, só por causa daquilo a que o filósofo alemão Wilhelm Wundt chamou "heterogénese dos fins", uma inconsequencialidade universal das ações humanas que, dizem os historiadores, foi teorizada pela primeira vez precisamente por um filósofo napolitano, Giambattista Vico, que percebera como a história tanto pode avançar como recuar ou até mesmo enroscar-se, afunilar-se e engasgar-se.

É o ponto de vista maldito e privilegiado do Sul, o das cidades falhadas e vitais, cujo encontro com uma certa ideia de modernidade foi um comboio que as atropelou, por isso sabem "desde sempre, quase por instinto", aonde a modernidade vai parar e olham para o ecrã da história com um enorme cartaz à frente a dizer: spoiler alert! Um ponto de vista que não é um miradouro soalheiro de onde a paisagem se admira, mas sim uma fresta escura por onde se espreita; uma dessas frinchas do esgoto a que os napolitanos chamam sajettera, palavra que Ferrante usa muito e no dicionário italiano não existe, mas relembra claramente o português "sarjeta".

O risco, nisto tudo, é o "deixa andar", o "não vale a pena", o famoso fatalismo dos povos do fatum e do fado, condenados a saber tudo desde o princípio e a não poder/querer acordar deste pesadelo onde, desde a briga de bairro ao martírio da Síria, somos todos chamados a escolher entre a máfia e a camorra.

Jornalista freelance, colaborador da Q CODE MAG

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