O fabuloso romance orientalista de Mathias Enard

Recebeu com <em>Bússola</em> o Prémio Goncourt de 2015. Uma certeza fica após a leitura do romance, o júri não se enganou.
Publicado a
Atualizado a

A reentrée literária deste ano promete bastante, tantos são os bons lançamentos que estão a ser anunciados pelas editoras. No caso das traduções, depois de Judas de Amos Oz, publicado no início do ano, há um outro romance estrangeiro que não se pode perder: Bússola. Um fabuloso relato literário sobre a influência do Oriente na cultura do Ocidente de autoria de Mathias Enard, romance que lhe valeu em 2015 o Prémio Goncourt.

O que está no interior deste volume de 400 páginas que justifique elegê-lo como um dos melhores romances do ano?

Tudo começa por volta da 23.00, momento em que o protagonista/narrador enfrenta uma insónia violenta. Como esta só termina depois da seis horas da madrugada, Franz Ritter tem a hipótese de elencar as suas memórias sobre as múltiplas viagens de estudo feitas pelo Oriente. E não o faz sozinho muitas vezes, antes contrapondo a sua paixão - nunca revelada - por uma investigadora, Sarah. Que é chamada várias vezes à narrativa e que a completa ao nível do lado emocional.

Tudo continua com os ruídos que o senhor Gruber e o seu cão provocam no silêncio da noite de Viena ao regressarem do passeio higiénico noturno de ambos. Esses passos do homem e do cão ressoam o suficiente para interromper os sonhos de quem está meio acordado, mesmo que envolto em recordações como as que as nuvens de ópio fumado também permitem. Um pouco por causa desse efeito do ópio existirão passagens alucinadas neste romance que seduzirão o leitor, mas serão as fruto do estado de uma espécie de sobriedade alucinogénica que o convencerão estar com uma obra-prima entre mãos.

Um romance inesperado, mesmo que o autor já tenha surpreendido com a conceção literária pouco usual de Zona, por onde passam dezenas de personagens muito bem delineadas, centenas de outras que inspiram curiosidade para a leitura daquilo que escreveram, pensaram ou compuseram, bem como milhares de referências amiúde de vários artistas, que criam ainda mais interesse em os descobrir de forma enciclopédica, nem que seja pela rama.

Tudo tem a ver com orientalistas, multidão que surge desde o início e não mais desaparece, sendo que as ligações ao presente avivam as memórias mais recentes dos leitores. Como é o caso de descrições da bela cidade de Alepo ou da histórica Palmira, ambas recém destruídas por uma guerra de loucura e de fundamentalismos que obrigam o leitor - isso é intencional - a refletir sobre o estado do mundo anos e séculos depois do que é relatado no livro. Porque a prosa reúne paralelismos civilizacionais que não existiriam sem a fruição de culturas tão diferentes como as que, por exemplo, o autor bem exemplifica ao colocar por uma meia dúzia de vezes a mundivisão de Fernando Pessoa; as inúmeras histórias de compositores orientais que tocam alaúdes e influenciam Chopin e Liszt, entre outros, permitindo o aparecimento da ode-sinfonia Deserto de Felicien David, composta após uma viagem entre Cairo e Beirute; as amizades com os arqueólogos que povoavam aquelas regiões e o conhecimento de ladrões de túmulos locais e europeus; o Hotel Baron, com reminiscências a Agatha Christie e T.E. Lawrence; e as milhares de pequenas histórias com que Mathias Enard vai compondo este relato obstinado em mostrar que as duas civilizações em confronto têm muito mais a beneficiar-se da relação do que de um divórcio...

Aliás, a descrição dessas influências orientais na cultura ocidental que surgem logo ao início, no palácio de Hammer-Purgstall, figura recorrente ao longo do romance, criam a necessidade de se as perceber no sentido mais íntimo, o que torna a leitura obsessiva por mais longo que este Bússola seja. E o final, mais frouxo do que se esperaria, mais não é do que uma metáfora de quem após sete horas de insónia se deixa adormecer sem grandes sobressaltos.

Bússola, de Mathias Enard, chega às livrarias na terça feira. A destacar a tradução e a revisão linguística, que transformam a versão portuguesa naquilo que o autor pretendia dar aos leitores.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt