O exemplo da Líbia
O caso da Líbia é um exemplo de que a retórica ocidental acerca da democratização dos países africanos e de outros com idêntico percurso histórico e que estão no mesmo estágio de desenvolvimento social não passa de uma grande mistificação. Impor a democracia a esses países a partir do exterior e, pior ainda, à força da bala, não funciona. Além disso, a mistificação e a hipocrisia ficam totalmente a nu quando se observa que essa estratégia é usada em relação a alguns países e a outros, não. A conclusão só pode ser uma: não é na democracia que o Ocidente está interessado.
Em 2011, a Líbia era um país estável, mas não democrático, à semelhança de outros países africanos e não só. Sendo arriscado fazer prognósticos históricos, pode aventar-se que, possivelmente, e dado os ventos da democracia liberal (isto é um oximoro) que sopravam no mundo desde a queda do Muro de Berlim, o país pudesse enveredar pelos caminhos de uma certa abertura, que modificassem a face do regime, sem grandes turbulências.
Contudo, recorde-se, 2011 foi o ano em que o Ocidente, capitaneado pelos EUA, entendeu levar a cabo a sua grande experimentação geopolítica baseada nas teorias de Gene Sharp: as revoluções "coloridas" ou "híbridas". O primeiro teste foi na Ucrânia, de que tanto se fala neste momento; o segundo foram as "primaveras árabes", todas elas fracassadas dez anos depois, inclusive na Tunísia, que até há pouco parecia o único caso de sucesso dessa experiência.
A intervenção ocidental na Líbia (foi disso que se tratou), aparentemente, não estava nos planos iniciais dos EUA. Eu estava nesse país na altura e assisti à resistência de Obama em autorizar o envolvimento americano no conflito líbio. Mas ele acabou por ceder à pressão do complexo industrial-militar estadunidense, assim como da principal potência interessada em intervir na Líbia: a França. São conhecidas certas relações espúrias entre o antigo homem forte da Líbia, Mohamar Kadhafi, e alguns presidentes franceses, cujas provas estes tinham todo o interesse em apagar. Não tenho, pois, dúvidas: o que aconteceu na Líbia foi, para usar uma expressão brasileira, uma "queima de arquivo" (sem esquecer, claro, o petróleo).
O facto é que, desde 2011, a Líbia está mergulhada no caos. Na esteira dos acontecimentos da Tunísia, houve várias manifestações antigovernamentais nesse e outros países árabes, que foram reprimidas pelas respetivas autoridades. A sublevação na Líbia, confirma-o um órgão da imprensa mainstream ocidental (RTP Notícias, 17 de janeiro de 2022), foi apoiada pela Organização do Atlântico Norte (OTAN). Kadhafi foi deposto e barbaramente assassinado, mas, desde então, o país está dividido entre dois governos rivais, um no leste, apoiado pelo comandante Khalifa Haftar, e outro na capital, Trípoli, a oeste, chefiado por Abdul Dbeibah e apoiado pelas Nações Unidas.
A "comunidade internacional" (leia-se: as principais potências mundiais) acredita que a guerra civil na Líbia pode acabar com a realização de eleições, que permitam aos cidadãos líbios escolher os seus governantes. Pessoalmente, tenho sérias dúvidas de que as eleições, se e quando forem realizadas, poderão de facto funcionar como uma espécie de "varinha mágica", capaz de pôr fim aos caos na Líbia. Este país assenta numa estrutura tribal secular, cuja influência, necessariamente multifacética, não acabará de repente, com a imposição de um modelo democrático à ocidental.
A verdade é que estavam previstas eleições legislativas na Líbia no passado mês de dezembro, enquanto as presidenciais estavam marcadas para ontem, 24 de janeiro, mas nenhuma delas foi realizada, devido a problemas vários, de jurídicos a militares. A enviada especial da ONU para a Líbia, Stephanie Williams, assegurou à imprensa que está a fazer esforços para que essas eleições sejam levadas a cabo até junho do corrente ano.
As mesmas poderão, naturalmente, acontecer. Se serão, de facto, a chave para solucionar a maka da Líbia, isso são outros quinhentos.
Escritor e jornalista angolano, diretor da revista África 21