O exemplo americano

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Ser o primeiro na história alvo de dois impeachments não devia enobrecer nenhum político, mas envergonhá-lo eternamente e a todos os seus apoiantes. Há um ano, num contexto pré-covid e com a reeleição na mira, as bancadas republicanas no Congresso uniram-se para proteger um presidente alvo de acusações de obstrução à justiça e abuso de poder. A sua popularidade, sempre constante, atingia os 45% e as condições para atacar a eleição presidencial cimentavam o culto do chefe. Hoje, o contexto é totalmente diferente.

Trump perdeu as eleições e o impeachment baseia-se na acusação única e peremptória de incitação à insurreição, um epílogo de quatro anos de cerco à democracia através da invasão ao Congresso no momento da oficialização dos resultados eleitorais. A popularidade de Trump caiu para 29% e Washington prepara a inauguração de Joe Biden completamente militarizada, com um dispositivo de segurança em redor do Capitólio que é o dobro das tropas americanas atualmente no Iraque e no Afeganistão no seu conjunto. É esta a herança que Trump deixa: uma democracia incendiada, instituições sob assalto, a lei por cumprir, uma massa de milhões pronta a dar a vida pela mentira e pelo autoritarismo. E quase 50 milhões de pessoas a recorrer à sopa dos pobres. Tem sido nos EUA, mas amanhã pode ser noutra democracia tão ou mais fragilizada, com níveis insustentáveis de polarização.

Um dos argumentos contra o impeachment em curso, ou melhor, a convicção ou não de culpa transitada em julgado em votação no Senado, diz que isto só faz de Trump um mártir, mobilizando ainda mais o facciosismo à sua volta. Na verdade, este efeito não traz nada de novo ao debate. Foi, aliás, o que esteve na origem do aumento da sua votação em relação a 2016 e dos atos da semana passada no Congresso. Esse perfil já lhe assentava como uma luva, não é o impeachment que o funda.

O que este processo eleva é, mais uma vez, a imprescindível defesa da Constituição e da decência no exercício de cargos públicos em detrimento de um cálculo de risco político-partidário. O Congresso não tem apenas a autoridade constitucional para destituir, condenar, absolver ou banir de cargos públicos um presidente ou qualquer membro da administração: tem o dever de a levar às últimas consequências. A parcimónia com que historicamente o conduziu reflete o juízo criterioso na aplicação do impeachment, não a sua banalização.

Um outro argumento diz que todo este processo, quando Trump está a dias de sair da Casa Branca, só vai radicalizar as suas bases, abrindo caminho a mais violência e, em último caso, sendo chumbado no Senado, a nova vitória legal e moral do trumpismo, fortalecendo-o no futuro. Eu diria que é um risco que o sistema político tem de correr.

Os factos são de tal maneira graves que ou os congressistas estão dispostos a defender as regras da sua democracia e as instituições para as quais foram eleitos, ou cavam formalmente a sua sepultura política. Claro que muitos estão dispostos a isso: 95% dos republicanos na câmara baixa votaram contra o impeachment, mostrando como está moralmente falido um partido estrutural da República americana. Mas há hoje uma oportunidade de separação das águas que não existia no impeachment do ano passado.

Vale a pena dizer que a doutrina constitucional divide-se sobre a sobrevivência do impeachment ao final do mandato do acusado. Certo é que a história já levou o Senado a votar uma incriminação ao antigo secretário da Guerra do presidente Ulysses Grant, mesmo depois de aquele ter apresentado a demissão. O passo agora dado, com o processo a arrastar-se no Senado depois da entrada em funções de Biden, tem o mérito de obrigar os senadores republicanos a clarificarem o futuro do seu partido. Serão precisos 12, além dos cinco que aparentemente votarão a condenação de Trump, arrastamento que só existirá caso o líder republicano na câmara alta, Mitch McConnell, assumir o voto a favor. Nada está claro, mas se o contexto hoje é diferente, também a pressão histórica pode jogar a favor.

O que está em cima da mesa é o lugar deste grupo na história do partido e da democracia americana: aprovam a primeira condenação presidencial ou protegem o grande instigador da insurreição. Forçar esta definição é importante para os EUA e para a eficácia da administração Biden, e na sua génese não deve prevalecer o medo da radicalização, que já existia sem travão. Ela só será controlada quando o republicanismo anti-Trump tomar as rédeas do debate à direita e conduzir os eleitores a outro rumo, deixando de ser conduzida por alguns dos seus setores. É esta inversão que precisa urgentemente de ser feita.

Um terceiro argumento defende ser o impeachment uma forma de manter Trump no centro do debate, ofuscando o início do mandato de Biden e alienando apoios republicanos indispensáveis ao debate bipartidário. Discordo. Trump estaria sempre no debate, com ou sem invasão ao Capitólio, quanto mais não fosse pela gestão da pandemia, a prioridade de Biden.

Mais uma vez, forçar a definição do rumo republicano é identificar os membros do Congresso disponíveis para o diálogo bipartidário. Por outras palavras, Biden precisa de ajudar os republicanos a ajudarem a sua administração. Neste sentido, na eventualidade de os dois terços serem alcançados no Senado para condenar Trump, dar-se-ia então uma nova votação, que só precisaria de maioria simples, para aprovar a inibição eterna de Trump para o exercício de cargos públicos.

Clarificar isto quanto antes é tirar um elefante da sala, mesmo correndo o risco de instigar o ódio. Acontece que ele está destapado há anos, não nasceu agora. Limpar o trajeto republicano da figura de Trump obrigaria a alinhar expectativas políticas entre candidatos do partido, expondo-se os limites do trumpismo sem Trump no horizonte eleitoral. É um favor que se faz ao partido.

Chegados ao ponto atual, nenhum dos caminhos está isento de riscos, mas o que está a ser seguido faz cumprir a Constituição, protege as instituições e obriga o sistema político à regeneração indispensável. Aliás, seria sempre esta trilogia a definir os termos da reabilitação da democracia americana, com ou sem invasão ao Congresso. E é também ela que assegurará o futuro da nossa democracia, em teste de stress já no dia 24. Defendamo-la com unhas e dentes, travando o trumpismo antes que ele nos atropele como tem feito na América.


Investigador

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