O exame que os médicos adoram odiar
"Ontem estudei 12 horas. Estou aqui em direta." Carlos (não é o nome deste jovem médico, que não quer ser identificado) tem 28 anos. O rosto liso e os olhos não denunciam a noite sem dormir, algo a que de resto está habituado, como médico não especialista ("indiferenciado") contratado para urgências - o destino possível, além da emigração, que Carlos não pondera de momento, para um médico sem especialidade. Na semana que vem, a 17, repetirá pela segunda vez a prova nacional de avaliação e seriação no acesso ao internato médico, que todos têm de fazer, findo o curso, para entrar numa especialidade (ou seja, para terem acesso ao internato, ou treino, da mesma). Fê-la em 2013, mas nessa altura, por motivos familiares, não estudou "uma página"; foi só "para ver como era". Teve 34%, uma nota baixa (o máximo é 100%, correspondendo a todas as 100 respostas certas), mas mesmo assim conseguiu entrar na especialidade de imunohemoterapia. Não gostou - "Não tinha muita noção do que era. É muito laboratorial e gosto de clínica, do contacto direto com pessoas" -, desistiu e resolveu tentar de novo o exame em 2015. Uma alteração legislativa nas inscrições, de que não se deu conta, impediu-o. E em que especialidade gostaria de entrar se pudesse escolher? Hesita: "Há uma idílica, mas não é tangível: dermatologia."
"Estamos a criar médicos marrões"
Dermatologia é das especialidades mais desejadas - porque considerada das mais rentáveis - e com nota mais alta. "Só se consegue entrar tirando acima de 90%", informa Carlos. Algo que considera estar fora do seu alcance. "Antigamente as pessoas estudavam três meses para este exame, agora estudam um ano ou mais. Já tinha estudado em 2015, e comecei a estudar mais intensamente em maio. Mas como tenho de trabalhar ao mesmo tempo, porque vivo com a minha namorada e há contas para pagar, não consigo passar o tempo todo a estudar. Na próxima semana não vou trabalhar, mas não sou, de modo nenhum, o caso típico do estudante que se está a preparar para isto. Tenho um amigo que teve mais de 90% que estudou um ano inteiro. E eu, confesso, tenho um problema enorme que é não conseguir estar com o rabo sentado a estudar por muitas horas seguidas. É preciso muita força mental". Faz uma careta. Trouxe com ele, para o encontro com o DN, um livro com exames antigos no qual as respostas estão pintadas de cores diferentes, consoante são corretas ou erradas - o método das cores é aliás muito popular como auxiliar de estudo. Agora, na última etapa, está a estudar sobretudo pelo i-pad, no qual mostra uma espécie de fichas, ou slides, de estudo, cheios de cores e técnicas de memorização, elaboradas por uma empresa que comercializa cursos de preparação para o exame (há duas em Portugal) e cujas aulas chegou a frequentar. "É mais fácil estudar assim. O manual, que também tenho, é muito maçudo". Refere-se ao Harrison"s Principles of Internal Medicine, assim denominado a partir do nome do editor das primeiras cinco edições, o cardiologista americano Tinsley Harrison (1900-1978), um livro em dois volumes e cerca de 3000 páginas que teve em 2015 a sua 19.ª edição e que por sua vez empresta o nome à prova portuguesa por esta ser inteiramente baseada nele. Como toda a gente, comprou-o em fotocópias, em inglês (há uma edição brasileira da última versão, mas os estudantes desconfiam dela porque sendo muito recente pode ter incorreções), e apenas dos capítulos que interessam, os que dizem respeito às cinco especialidades cobertas pelo exame (nefrologia, pneumologia, hematologia, gastrenterologia e cardiologia). "Custou-me 120 euros. E já li aquilo tudo umas três vezes." Suspira. "Estamos a criar médicos marrões. Há até quem tome ritalina [medicamento para crianças com défice de atenção], para melhorar a concentração. E baldes de café. As pessoas até mudam de aspeto no processo. Quando chega ao dia do exame, então, estão muito nervosas." É o que teme acontecer-lhe. "Se corre mal fico de fora."
"Como decorar a lista telefónica"
E muita gente vai ficar de fora. Em 2016, um em três não terão vaga - nunca houve tantos candidatos, cerca de 2600, mais 800 que vagas na especialidade. André Paquete de Oliveira, 24 anos, que prepara o seu primeiro - e espera que último - Harrison, já fez as contas. "Para o ano vai haver ainda mais gente. Se tiver uma má nota terei de ponderar muito bem se repito ou saio do país. Porque qualquer dia para se ter vaga tem de se ter de 70 % para cima." Começou a estudar para a prova há um ano, mas assume que não conseguiu manter um ritmo regular de estudo desde o início. "Só desde junho, quando acabei o curso, é que estudei todos os dias. Tirei uma semana de férias e a partir de julho estudo 8 a 12 horas diárias. Não tinha o hábito de estudar tanta horas, chego ao fim do dia com a vista muito cansada. O livro é muito complexo, muito chato. Ao princípio, lia duas, três páginas por hora. Se for uma página sem imagens, até pode demorar mais tempo. E as que temos de ler são cerca de mil. Estou a revê-las pela terceira vez. Tenho amigos que conseguiram estudar muito mais tempo e afincadamente, mas sei que não preciso de ter uma nota muito alta porque a especialidade que quero, medicina física e de reabilitação, não o exige." Ainda assim, não faz praticamente mais nada. "Não tenho tido grande vida, só tento continuar a ir ao ginásio." Estuda numa sala do Hospital de São Francisco Xavier, aberta toda a noite para os estudantes, facto do qual André, que não gosta de acordar cedo, tira partido. "Começo ao meio dia e costumo ficar até às duas da manhã. Temos aqui uma cozinha onde podemos deixar as coisas e aquecer, segurança, tudo". No último mês notou menos gente - os fixos são 10 a 15, atualmente. Sobre o modelo de exame, ironiza. "Se fosse um exame de seriação com uma lista telefónica era parecido. Tem de se decorar à vírgula. Não é de modo nenhum a melhor forma de avaliar se a pessoa ao fim de seis anos de curso está preparada para uma especialidade".
E nesse aspeto, acha Carlos, a coisa tem piorado: "Antes, talvez até 2004, 2005, havia perguntas objetivamente clínicas, para médico que sabe medicina, mas a partir de certa altura começaram a enveredar para perguntas com ratoeira. Quando vamos fazer o exame já estamos à procura da má fé." Mostra exemplos no livro: uma resposta que está errada porque a frase diz "ou" em vez de "e", perguntas sobre estatísticas com valores muito parecidos. "É importante sabermos estatísticas, se um determinado valor é alto ou baixo, mas não faz sentido sabermos se é 15% ou 18%. Por exemplo."
É de tal forma, diz André, que ninguém pode achar que quem tire má nota vai ser mau médico. "Aliás, se todos os médicos já a trabalhar, especialistas e não especialistas, fossem fazer o exame se calhar tinham piores notas que as que têm os recém-formados. É um ano a estudar, aprendemos muita coisa mas não sei se vou alguma vez usar muita dela."
Os negócios do Harrison
Ana Ribau, 26 anos, que teve uma nota muito alta na prova - 95% - quando a fez, em 2015, aponta-lhe vários defeitos ("Devia haver pelo menos um caso clínico, e é só sobre medicina interna, alguém que queira ir para uma especialidade cirúrgica não tem nenhuma pergunta direcionada") mas considera que "é importante haver uma prova nacional, porque há disparidades entre as faculdades no que respeita às notas." Reconhece, porém, que, com este perfil de prova, o empenho não corresponde necessariamente ao resultado. "Conheço pessoas que tiveram notas mais baixas e estudaram tanto como eu." Ela estudou desde março, com a tese do curso para fazer, em paralelo, até junho. "De julho a novembro acordava às oito, começava a estudar às nove até à hora de almoço, recomeçava às duas, ia até às seis, parava uma hora e depois ia para a aula, e depois estudava a seguir até às 11." A aula a que Ana se refere é a dos cursos ministrados por empresas criadas especificamente para preparação do Harrison. "Fiz os cinco módulos, cada um de um mês e pouco, e depois o curso de preparação intensiva, e gastei cerca de mil euros".
Nem toda a gente tem disponibilidade económica para estes valores, mas pelo menos uma das empresas, a Academia da Especialidade (são duas: a outra denomina-se Exame da Especialidade), fez este ano um protocolo com um banco através do qual ele "oferece" o curso, mediante a fidelização do jovem médico à instituição. Há também, adianta José Timóteo, o coordenador pedagógico e um dos fundadores da Academia (com Pedro Simões, também médico, e Dina Silva, economista), a possibilidade de o médico só pagar quando faz o ano comum (o ano de internato indiferenciado que se segue ao curso) e começa a receber. E ainda, como prémio, a devolução, pela empresa, do preço do curso ao melhor aluno de cada zona geográfica/cidade onde estes são lecionados.
"No ano passado, entre as 10 melhores notas tivemos seis", afiança este médico psiquiatra de 33 anos, que fez o Harrison em 2007 e obteve 77%. "Estudei como toda a gente estudava, sozinho, e surgiu-me a ideia de, à imagem do que já sucedia noutros países, fazer cursos específicos de preparação, em que se sistematiza a informação mais relevante." Para professores recrutam entre os melhores alunos dos anos anteriores, com mais de 90%, e, explica, procuram "que se especializem em temas".
Em 2015, a Academia, que começou a funcionar em Coimbra, sete anos antes, com poucas dezenas de alunos, teve cerca de 900 inscritos que fizeram pelo menos um curso. "Neste momento temos a noção de que 50 a 60% das pessoas fazem algum curso e quem não faz sente que está em desvantagem." O funcionamento, explica, é "por módulos. Cada aula, que tem lugar nas faculdades, onde alugamos salas, tem duas horas e custa 10 euros. São 65 temas/aulas, pelo que um curso completo custa cerca de 650 euros. E depois se se quiser fazer o curso essencial no fim são mais 200 euros." E como vai ser quando o Harrison, se tudo decorrer como planeado, for em 2018 substituído por outro exame (ver texto nestas páginas)? "Há muito que esperamos que tal suceda. E não vai deixar de haver exame, vai ficar mais complexo, portanto vai continuar a haver necessidade de um tipo de apoio. Quando conhecermos o tipo de exame vamos preparar aulas e materiais. Claro que no início vai ser mais difícil - por exemplo o livro dos exames, que damos aos nossos alunos, não vai existir logo." Outra coisa que não deverá existir é bibliografia - o que implica uma abordagem totalmente diferente e era das poucas coisas que os examinandos não se queixavam no Harrison: saberem por onde estudar.
De um exame, como diz Carlos, "obcecado pela bibliografia" vai-se passar para um exame sem bibliografia. Não há fome que não dê em fartura, diz o ditado - e vice versa.