1000 páginas, 14 horas por dia a decorar: o fim do exame mais temido

2900 alunos para 1600 vagas no exame à especialidade. Alunos gastam mais de 1500 euros para estudar para o Harrison.
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Decorar, decorar, decorar. É isto que Ana Rita Araújo, de 26 anos, tem feito nos últimos meses. Não convive com os amigos, não participa nos almoços de família, não vai ao ginásio. Acumula o cansaço de um ano de estudo, e o nervosismo e a ansiedade de quem faz parte do grupo de recém-graduados que na quinta-feira faz pela última vez o Harrison, o exame que determina o acesso dos médicos à especialidade - o chamado "papão" da Medicina. "Estou mais frágil do que nunca, menos tolerante. É um nível de stress muito grande. Dás por ti a chorar porque se acende uma luz no carro."

Ana Rita está numa posição "ingrata". Se quiser repetir a prova, terá de submeter-se ao novo modelo - ele vai mudar, neste ano. "Por outro lado, felizmente que vai mudar. Este é um exame para marrar, decorar, e é baseado num livro que está desatualizado." Um pouco de maquilhagem disfarça as olheiras na pele clara, que denuncia um verão em casa. "Desde junho que não faço mais nada. São 12 horas por dia de estudo." Sobre a especialidade, "é a pergunta para os cem milhões". "Quero uma mais cirúrgica, mas não sei qual." Uma boa nota na Prova Nacional de Acesso à Formação Especializada "é acima dos 85%", mas não garante nada. "Somos 2900 alunos para 1600 vagas."

Na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, na segunda-feira centenas de alunos fizeram um exame de simulação do Harrison, promovido pela Academia da Especialidade, uma das empresas que ministram cursos para preparar os médicos para a prova. Um ambiente mais descontraído, mas que serviu para terem uma noção do que os espera no tão temido exame.

Duas horas e meia após o início da prova, Ana saiu do anfiteatro e suspirou de alívio. Respondeu às cem questões de escolha múltipla em duas horas, mas só saiu no final, e já com os cálculos feitos. "Tirei 77%. É um pouco abaixo do que quero, mas estas provas são sempre mais difíceis."

Inscreveu-se na Academia porque sentiu que precisava de orientação no estudo. "Fiz os cinco cursos e o intensivo. Paguei cerca de mil euros, mas sinto que foi bom investimento. Estou bem preparada", diz. A este valor somam-se 120 euros de fotocópias do livro no qual se baseia a prova (que custa 250 nas livrarias), cem de material e um valor de fotocópias que não sabe precisar. Contas rápidas, chegamos à conclusão de que há colegas que gastam mais de 1500 euros para preparar o exame. Sabe-se que também há quem recorra a Ritalina ou a antidepressivos para aguentar o ritmo. "Só bebo café", assegura a jovem médica.

Pedro Martins, de 24 anos, também tirou 77% na prova de simulação, mas concorda que os resultados destes exames devem ser "relativizados". Considera-se calmo e bem preparado. "No verão não ultrapassava as 12 horas de estudo por dia, mas a partir de setembro comecei a chegar às 15." Dormia sete horas por noite, mas começou "a ter sintomas de cansaço, depressivos". Foi então que decidiu "cometer a loucura de passar a dormir oito horas". Para descansar bem, precisa de não pensar no exame pelo menos meia hora antes de ir para a cama. "É como uma maratona. Precisamos de ser regrados", diz o médico recém-graduado, que espera uma vaga em Medicina Desportiva. Há muita pressão: no ano passado abriu apenas uma, e entra quem tiver a melhor nota. "Para o nível de estudo que tive, espero acima de 80%."

"Estamos a lutar por uma vaga"

Duas semanas antes do exame, o DN assistiu a uma aula da Academia da Especialidade, no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, no Porto. "Os formadores são pessoas muito bem preparadas, dão-nos mnemónicas, dicas para facilitar o estudo", diz Ricardo Soares, de 30 anos, que se prepara para realizar a prova pela segunda vez. Fez o curso em Madrid, onde o sexto ano é muito intenso, o que não lhe deixou muito tempo para estudar. "Tirei 65%." Desta vez, passou o ano a estudar, o que aumenta a pressão. Diz-lhe a experiência que "o exame é bastante literal, exige muita memória fotográfica. Há muitas incongruências".

A polémica à volta da prova de seriação, que se baseia unicamente no manual Harrison"s Principles of Internal Medicine, arrasta-se há vários anos. "Não tem componente clínica, apenas avalia a nossa capacidade de memorização. Mas o facto de ser o último ano do Harrison cria uma ansiedade acrescida, porque muita gente não vai ter acesso à especialidade e não sabe o que vem aí. Há alguns anos os médicos lutavam por uma determinada especialidade, agora estamos a lutar por ter uma vaga", diz Mónica Pinto, médica recém-formada, que também fez alguns módulos do curso. Só no ano passado, perto de 700 médicos foram impedidos de entrar na especialidade, restando-lhes repetir a prova ou ficar como "médicos indiferenciados".

Com o problema da falta de vagas, a pressão para ter uma nota alta é cada vez maior, o que tem contribuído para a criação de mais recursos para os médicos recém-formados estudarem para a prova. Atualmente, podem comprar cursos presenciais, aplicações para smartphones, ficheiros de áudio, explicações e até apontamentos.

Ao DN, José Timóteo, médico psiquiatra e cofundador da Academia da Especialidade, conta que a empresa surgiu em Coimbra, em 2008, e estendeu-se a todas as cidades onde existem cursos de Medicina. Com base no que foi mais perguntado nos exames ao longo dos anos, organizaram um conjunto de 63 aulas de duas horas, divididas por módulos, que podem ser complementadas com o curso intensivo (25 aulas). Se fizerem tudo, os médicos pagam 880 euros, e têm acesso também a slides, vídeos de resumos e livro de exames. Uma "fórmula muito bem- -sucedida".

Em todo o país, o psiquiatra estima que cerca de mil pessoas façam pelo menos um módulo. Existe a possibilidade de aderirem a um protocolo com um banco e só pagarem uma parte, mediante fidelização. "Também temos a opção de só pagarem no ano comum, mas a adesão a essa modalidade é residual." José Timóteo explica que quem orienta as sessões são médicos, que passam por um processo de audições, onde são avaliados os seus conhecimentos e a sua capacidade de comunicação. Regra geral, tiveram mais de 90% no Harrison.

No primeiro Harrison, Alexandra Rodrigues tirou 88%. Como queria dermatologia - uma das especialidades mais desejadas -, a nota não foi suficiente. Repetiu: 100%. "Gostava de dar aulas, mas não fiquei em nenhuma academia. Portanto, resolvi criar a minha." Foi assim que nasceram as Conversas da Especialidade, ficheiros áudio com a matéria que sai no exame.

Os planos de estudo são gratuitos, bem como algumas conversas, enquanto a versão paga custa 61,5 euros mais IVA. "O que me permitiu tirar uma nota tão boa foi ter método de estudo e um plano muito bem estruturado. Como costumo dizer: o tubarão come-se às fatias", conta, destacando que "o exame não tem de ser uma coisa tão tenebrosa como se pinta".

No campo das apps para smartphones, José Diniz, estudante de Medicina do 5.º ano, e Bruno Guimarães, interno de Medicina Física e de Reabilitação, criaram no ano passado a HarryFlash, desenvolvida pela Cosmicode. Logo nas primeiras 24 horas, contabilizaram duas mil instalações, contando atualmente com 7500. "Uma grande parte dos conteúdos estão disponíveis gratuitamente", refere o estudante. Já a versão completa, "na qual existe um grande reforço de conteúdos", custa 115 euros, mas também é possível comprar cada módulo por 25 euros cada. Neste momento, estão a perceber as particularidades do novo exame para decidir o que podem oferecer aos estudantes. Se até aqui os médicos tinham de estudar entre 800 e mil páginas, José Timóteo diz que, para o novo exame, "mais clínico", a bibliografia ronda as 1400 páginas. "Por isso, o novo curso da Academia tem 93 aulas." E já há alunos a preparar a prova do próximo ano. "Este é um exame mais holístico, mais global. Creio que pode ajudar os colegas a serem melhores profissionais. A mudança só peca por tardia."

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