O estranho visitante
Tenho-o visitado por estes dias. Está orgulhoso por continuar a atrair as atenções, ao fim de quatro séculos. É verdade que teve uma vida intensa e atribulada, mas o tempo deu-lhe o justo reconhecimento, como excecional pintor, pelo seu caráter próprio e inovador, pelo modo como soube interpretar os ambientes, como pôde lidar com a luz e as suas cambiantes e, sobretudo, pela capacidade de compreender o género humano. Se não se tivesse dedicado à sua arte, teria sido decerto um magnífico encenador dramático. Os seus retratos estruturam-se segundo uma harmonia de cores e um movimento que se destaca em fundos discretos, capazes de evidenciar a apresentação teatral, com recurso a um diversificado guarda-roupa que a historiadora de arte Luísa Sampaio enaltece, salientando a originalidade dessa faceta do artista - através de ornamentos orientais faustosos (correntes de ouro, armaduras, capacetes, chapéus de plumas). Trata-se de um rico desfile teatral que implica a rigorosa caracterização das figuras que nele participam.
É o pintor genial que se evidencia, marcado pela influência e pelo intenso estudo sobre os mais célebres artistas italianos, co mo Giorgione, Ticiano e Veronese. A capacidade inventiva transforma-se e é essa marca inconfundível que atraía os seus clientes, maravilhados por essas metamorfoses. Seja no retrato das figuras influentes do tempo e da cidade, seja na expressão, a um tempo discreta e portentosa, das instituições, o que fica claro é a qualidade do encenador, do mestre, do artista. Aos cerca de trezentos títulos de pintura que produziu somam-se os desenhos, as gravuras, os esboços, em que a certeza da mão se junta ao olhar divino do criador. E porquê o autorretrato em diversos registos e representações? Desde o Estudo ao Espelho ou do intenso e enigmático Autorretrato enquanto Jovem, com marca indelével, encontramos o artista à sua imagem; depois, à oriental e à antiga; ainda como burguês; como artífice na sua oficina; e, para culminar, o olhar maduro e de desafio entre dois círculos, e, no final, sorridente e transfigurado, como Zêuxis, o grego do século V, intérprete das paixões humanas. É o encenador dotadíssimo que se apresenta e que faz questão de aliar a qualidade do pintor ao carisma do protagonista dramático, até chegar ao mimo, que não permite esquecer S. Paulo, porque é o contraste da face humana, como máscara do teatro, ou personna, que lhe interessa realçar.
CitaçãocitacaoSim, é de Rembrandt que falo. É a sua força magnética que me leva a visitá-lo pela tarde, como se fizesse uma prece de vésperas.esquerda
Tenho-o visitado na sucessão dos dias, e de cada vez que nos encontramos ele diz-me sempre uma coisa diferente. E tenho podido usufruir do poder magnético do seu olhar e da sua presença, compreendendo melhor como o tempo é fugaz e impercetível. Ernst van de Wetering (1938-2021), o extraordinário investigador, deixou-se prender pela imagem dessa pessoa que pergunta sobre os enigmas da vida no fundo dos tempos. Ele afirmou que esse autorretrato, que tenho visitado, assume um papel excecional entre as obras-primas do génio. O quadro esteve na posse de Maximiliano de Beauharnais, tendo depois ido para a Rússia na década de 1850, estando agora na coleção Thyssen de Madrid. Sim, é de Rembrandt que falo. É a sua força magnética que me leva a visitá-lo pela tarde, como se fizesse uma prece de vésperas. Tenho contado no Museu Gulbenkian com a sua presença de visitante ilustre, na composição emblemática, em que o artista se representa de preto, com gibão rematado por pele e duas correntes de ouro. Perante ele, sinto a força e a dúvida do tempo e já vou sentindo a sua partida e a falta que me fará este encontro discreto nos fins de tarde serenos e inesperados.
Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian