O estranho mundo do conde Olaf e das crianças desamparadas
É um mundo excêntrico, aquele em que se passa a acção de Lemony Snicket-Uma Série de Desgraças. As casas pegam fogo sem se saber porquê, as sanguessugas gostam de carne humana, há víboras gigantes que adoram brincar com crianças, os carros parece terem sido construídos num país comunista dos anos 50, as pessoas vestem-se como se fossem personagens de Charles Dickens e os actores não são gente socialmente recomendável.
É um mundo gótico e retro, insólito e sinistro, algures entre o da Família Addams e o de Tim Burton, e foi criado pelo escritor Daniel Handler, sob o pseudónimo de Lemony Snicket, numa série de livros infantis enormemente populares nos EUA. Três desses livros foram amalgamados no argumento de Lemony Snicket-Uma Série de Desgraças, de Brad Silberling (estreia-se hoje), para contar a história dos infortúnios dos três pequenos irmãos Baudelaire, que ficam órfãos na sequência de um incêndio que destrói a sumptuosa casa dos pais e os vitima. As crianças são entregues à custódia de um parente remoto, o conde Olaf (Jim Carrey), um actor atroz e péssimo carácter, que as quer matar e ficar com a fortuna que elas herdaram.
Mesmo quem não faça a menor deia que Lemony Snicket-Uma Série de Desgraças resulta da junção de três livros, notará que o soturno mundo de fantasia que Brad Silberling visualizou a partir deles parece mais um bricabraque organizado por um director artístico imaginativo e com bolsos fundos, do que um mundo orgânico, com uma lógica de funcionamento própria, povoado por personagens que sentimos pertencer-lhe de raiz, em vez de fazerem parte da laboriosa decoração. O que não teria o já invocado Tim Burton feito com tal material...
Esta artificialidade muito elaborada mas mal disfarçada também tem o rabo de fora no plano narrativo. As vicissitudes do trio de órfãos não chegam a formar uma história com cabeça, tronco e membros, ficando como uma sucessão de situações humorístico-arrepiantes tenuamente grudadas umas às outras. E os protagonistas ou fazem o seu número excêntrico e desaparecem (os tios e tias), ou têm personalidades de uma nota só (os talentos individuais dos pequenos Baudelaire), em redor das quais executam as pequenas variantes que as peripécias do enredo pedem.
Quanto a Jim Carrey, na figura de Olaf e dos seus alter egos, ainda tem que comer muita sopa para pedir meças ao Lon Chaney que cita a certa altura. Se Silberling o queria simultaneamente assustador e ridículo, só teve sucesso no segundo intento. Lemony Snicket-Uma Série de Desgraças mostra que uma boa direcção artística não chega para fazer um filme; e Olaf mostra que maquilhagem, guarda-roupa, gestos largos e caretas não chegam para compor uma interpretação.