O estranho caso de O Governador
Este é o tempo dos conceitos híbridos. Nada é exatamente o que parece ser, fazendo-nos desconfiar da mentira por detrás da verdade ou, ao contrário, da verdade por detrás da mentira. Nem a propósito, vem aí O Governador, um livro sobre Carlos Costa, o homem que liderou o Banco de Portugal entre 2010 e 2020, e que promete ser um híbrido de autobiografia, de uma espécie de limpeza de currículo e ajuste de contas, com as vantagens da versão não contraditada.
Luís Rosa, que foi quem escreveu o livro a partir de um conjunto de conversas com Carlos Costa, acha que o mesmo é um exercício de prestação de contas. Tendo sido uma iniciativa sua, é de registar o extraordinário nível de presunção que o jornalista revela, indo muito além do que está previsto na Constituição, na lei e nas regras do Banco Central Europeu. Assim, os portugueses podem estar mais descansados, pois Luís Rosa está cá para que nada morra nos alçapões secretos das instituições ou na memória dos protagonistas.
O autor, para além de escrever, tem-se ocupado do marketing do escrito. E as coisas estão-lhe a correr bem. Senão, vejamos: escolheu para teaser uma alegada pressão do primeiro-ministro António Costa ao então governador para que não afastasse Isabel dos Santos da administração do BIC; a notícia galopa em tudo o que é comunicação social; alguns partidos da oposição agarram a oportunidade e apimentam ainda mais o tema; o primeiro-ministro diz que a revelação é falsa e, portanto, acionará judicialmente Carlos Costa; e, por fim, o próprio Luís Rosa dá o corpo às balas e convida o chefe do governo a processá-lo, num épico rasgo de coragem publicitária.
Carlos Costa foi um dos protagonistas da maior falha de regulação de que há memória em Portugal, em que o banco central não foi capaz, ou não quis, detetar as irregularidades que fizeram ruir o BPN, o BPP e, sobretudo, o BES. Estranhamente, sobre isto o autor não adianta qualquer revelação que possa impulsionar a venda de livros e, por aí, maximizar o seu alegado exercício de prestação de contas.
O lugar de governador do Banco de Portugal é de elevada complexidade. Por isso mesmo, a figura que o ocupa beneficia de um quadro específico de proteção da sua posição, para além de uma remuneração principesca, que, aliás, não se esgota no período em que exerce o ou os mandatos. Este estatuto implica uma responsabilidade acrescida, incluindo um conjunto de obrigações éticas e institucionais, nomeadamente o sigilo e a reserva sobre as matérias em que interveio. Para alguém que saiu do cargo há apenas dois anos, é estranha a publicação de um livro que, pelo que é já possível perceber, vai ao detalhe de revelar conversas pessoais mantidas com o titular de um órgão de soberania ainda em exercício de funções.
Das duas, uma: ou o caso era, à data, sério e o governador deveria ter denunciado a pressão de imediato; ou então não lhe assiste o direito ético de o fazer agora, tão pouco tempo após a sua saída e com António Costa ainda em funções. Na vida pública, a craveira dos protagonistas é determinada pelo que dizem e pelo que não dizem. Até nos ajustes de contas há um código de conduta, que no livro O Governador é violado.
Como sabiamente lembrou Mário Centeno, a democracia demanda o respeito pelas instituições, quer quando as servimos, quer quando as deixamos de servir. Lamentavelmente, este não foi o caso.
Professor catedrático