O escândalo por trás da porta branca da Academia Sueca

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Em 1996, a artista Anna-Karin Bylund enviou uma carta ao administrador da Academia Sueca a denunciar Jean--Claude Arnault, acusando-o de assédio sexual. Se nessa altura Sture Allen não tivesse considerado que o conteúdo da carta não tinha qualquer importância, talvez o Prémio Nobel da Literatura de 2018 fosse atribuído e entregue em 2018, em vez de estar adiado para 2019.

Este "talvez" é um entre múltiplos "suponhamos" da história do Nobel que, como foi ontem anunciado finalmente, fica adiado para o próximo ano.

Por causa dessa desatenção que em rigor não é uma desatenção, é um procedimento habitual e continuado em relação às queixas feitas por mulheres, no início do próximo outubro teremos menos uma emoção. Ficaremos à espera dos Nobel das outras categorias, que não dependem da Academia Sueca, mas não nos deteremos a olhar longos minutos para uma enorme porta branca fechada, à espera da abertura e das frases em sueco entre as quais tentaríamos decifrar um nome reconhecível. Muitas vezes pouco reconhecível, de resto, ou extremamente reconhecível mas inesperado, como o de Bob Dylan. Esperaremos um outro ano para ter então uma surpresa em dobro.

E tudo por causa de um rastilho acendido em outubro do ano passado por múltiplas denúncias de que um certo Harvey Weinstein usava e abusava do seu poder de produtor de cinema para conseguir sexo. É uma história do género O Rei Vai Nu. Aquela coisa de "toda a gente sabe mas ninguém fala nisso", como aconteceu com a pedofilia na Igreja Católica ou, por cá, com as histórias escabrosas da Casa Pia, sobre as quais já se percebeu que nunca saberemos nada que se aproxime de verdade.

O rastilho espetacular do chamado assédio sexual, com o seu hashtag #MeToo, tinha muitas ramificações que não param de aparecer. Aqui, ali, acolá aparecem mais casos e mais denúncias, mais vítimas e mais escândalos.

A história que levou à suspensão do Nobel da Literatura em 2018 tem no centro um francês, o tal Jean-Claude Arnault, fotógrafo de profissão e marido de uma das escritoras da Academia Sueca. Segundo as notícias agora divulgadas, ele movia-se com tal à-vontade que chegou a "tocar de forma inapropriada" a princesa Victoria, a herdeira do trono da Suécia.

E aí bate o ponto. Não na princesa, claro, mas na total impunidade em que o predador viveu até agora. Em novembro do ano passado, em pleno escândalo Weinstein, foram apresentadas 18 queixas de assédio sexual relativas a Jean-Claude Arnault. Ele e a mulher, a poetisa Katarina Frostenson, dirigem um organização subsidiada pela Academia.

Seguiram-se declarações para um lado e para o outro, e foi desde logo pedida a cabeça da responsável máxima da Academia, a académica Sara Danius, que decidiu contratar um advogado para processar Jean-Claude. Cherchez la femme, por assim dizer, frase que uso aqui de forma totalmente enviesada. Isto é, da forma mais tradicionalmente aplicada. Ela "estava a pedi-las", para ir direta ao assunto.

A história não acabou aí. Dos 18 membros da Academia, dois já se tinham afastado em tempos, um por não concordar com a atitude do mesmo em relação à perseguição a Salman Rushdie, outra por não se sentir bem naquele grupo. Depois das denúncias de novembro, fecharam como sempre a porta e votaram a permanência ou não da mulher de Jean-Claude, que continua a negar as acusações feitas ao marido. Além das acusações de carácter sexual, o mesmo personagem estava na origem de fugas de informação sobre os nomes dos laureados em seis anos. Um casal perfeito. Mas vamos à votação: oito votaram para que Katarina Frostenson ficasse, seis para que saísse. Destes últimos, quatro decidiram entretanto afastar-se do comité. Já não é possível refazer um grupo de jurados em tempo útil, porque é preciso que o rei faça um novo regulamento para substituir o atual, datado do século XVIII.

Houve certamente muitos abusos e oportunismos desde que o movimento #MeToo avançou, mas, se fosse necessário fazer um balanço, estou certa de que a visibilidade das vítimas e dos predadores foi essencial para que as queixas deixassem de ser ignoradas. Por isso agora a carta enviada à Academia Sueca há 22 anos por uma artista, arquivada por não ter importância, chegou aos jornais e ganhou o destaque que devia ter tido desde logo. Pelo caminho ficaram inumeráveis queixas, explicitadas ou não, de mulheres que por todo o mundo foram submetidas a pressões de carácter sexual.

Os processos são lentos e muitas vezes confusos. Weinstein só nesta semana foi expulso da Academia de Hollywood, e pelo caminho foi também borda fora o realizador Roman Polanski.

Pelo menos uma coisa fica clara nestas histórias cheias de figuras públicas e academias cujo prestígio parecia à prova de bala. Como diria Bob Dylan, os tempos estão a mudar.

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