O entorpecimento da humanidade face ao grande embuste global
1. O problema começou muito antes das acções criminosas dos palhaços Trump e Bolsonaro (o primeiro rasgando o Acordo de Paris, de 2015, que Obama assinara, tal como a União Europeia; o segundo a destruir conscientemente a Amazónia - ambos por motivos aparentes de desenvolvimento económico dos respectivos países, e que se lixe o mundo como um todo). O principal objectivo deste Acordo é "travar" o aquecimento global obrigando a medidas que não o deixem chegar aos 2º C, mantendo-o preferencialmente em 1,5º C, e entrando em vigor a partir de 2020.
Mas o problema também não é só a "ingenuidade" de um tal acordo, que decorre da tremenda dificuldade em o fazer cumprir - mesmo por quem o assinou. É a premissa de que ele parte: de que se conseguíssemos esse objectivo, a Terra manter-se-ia habitável.
2. Ora, o que nos dizem entretanto os dados já disponíveis (1)? Indico a seguir meia dúzia deles, quase ao acaso:
1) sempre houve desmatamento no Brasil, mas actualmente há mais de 1700 fogos activos; até agora,18% da Amazónia já foi queimada; e acredita-se que a partir dos 25% esta floresta "pulmão do mundo" deixe de conseguir reconstituir-se;
2) globalmente, há cada vez menos peixe, em quantidade e diversidade, nos oceanos (porque as cinzas são arrastadas até aos rios, que as levam para o mar, reduzindo o seu alimento - quando não promovendo a sua extinção;
3) no Pacífico Norte já há uma ilha toda feita de plástico flutuante (chamada Grande Mancha de Lixo do Pacífico), onde não se pode caminhar, cuja superfície está calculada em 1,6 milhões de quilómetros quadrados (mais de 17 vezes a superfície de Portugal continental mais Açores e Madeira);
4) está confirmada a existência de microplásticos nos peixes que comemos, no pó do ar que respiramos, na água engarrafada, no sal de cozinha e até nas fezes humanas (estas constatadas em vários países europeus);
5) há mais de 200 mil voos aéreos por dia no mundo (como medida de escala: um único voo Londres-Sydney emite por cada passageiro mais CO2 do que um cidadão do Paraguai durante um ano inteiro);
6) o Earth Overshoot Day 2019 (dia anual em que a Terra passa a viver em sobrecarga, isto é, em que se esgotaram os recursos naturais que o planeta é capaz de regenerar nesse ano, passando a hipotecar-se os do ano seguinte) aconteceu em 29 de Julho.
3. Mas então, se isto já vai assim, que sentido faz negociar qualquer "travão" para diminuir a continuação do aquecimento global? A emergência climática já aí está, bem à vista de quem quiser não ser enganado. Se toda a poluição parasse milagrosamente agora, muitos séculos já seriam necessários para a regeneração do planeta - se é que ela ainda é possível.
E não é apenas do clima que estamos a falar. Os recursos do planeta também são finitos e muitos aproximam-se do fim, pois não são regeneráveis.
4. O problema torna-se assim eminentemente político. O capitalismo assenta no crescimento constante da economia (embora com pequenos ciclos recessivos periódicos, sempre seguidos por novos ciclos expansivos), que por sua vez assenta no crescimento do consumo.
Claro que os políticos não falam disto, porque vivem do curto prazo (e, como dizia o outro, "a longo prazo estamos todos mortos"), este discurso não dá votos, e é fácil apelidá-lo de "catastrofista" (em especial nas redes sociais, onde é fácil destruir qualquer tomada de consciência e ainda mais o seu autor).
E, contudo, o diagnóstico é simples: a Terra já não aguenta tanta gente nem tanto consumo per capita, quanto mais a crescerem!
Mas podíamos perfeitamente viver com muitíssimo menos consumo (pense na moda - o mais absurdo dos expoentes do consumismo irresponsável porque insustentável -, nos gadgets electrónicos, nos hábitos enraizados do usa-e-descarta, no desperdício alimentar...). E a robotização podia ser uma formidável oportunidade de justiça social universal, com muito menos trabalho mas para toda a gente.
5. Ou seja: é preciso uma revolução à escala global, concertada, baseada na consciência da finitude e limites desta "bolinha" que é de todos, pelo que não pode uma parte deles estar a explorá-la à doida condenando os descendentes de todos à pura e simples extinção (talvez, quando a Terra se tornar inabitável para os humanos, ainda seja habitável para baratas e escaravelhos, mas o consolo é pequeno...). Perante isto, os problemas circunstanciais da política internacional parecem tão comezinhos e ridículos!...
A História ensina-nos que os humanos só acordam para os grandes problemas depois de um grande pontapé no rabo. De que tamanho terá de ser a próxima catástrofe para que se dê início à revolução universal que já há muito tarda?
Maestro, compositor e professor aposentado. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
(1) A literatura actualmente disponível sobre esta matéria já é muito vasta. Para começo de conversa, recomendo vivamente, por ora, apenas 3 recentes artigos de imprensa: "Emergência ecológica", de José Tolentino Mendonça (in Revista E do semanário Expresso de 17 de Agosto de 2019, pág. 62); "Amazónia esventrada, oceanos acidificados, solos mortos. Eu?", de Daniel Deusdado; e "Ambiente: menos coqueluche, mais realismo", de Catarina Carvalho (ambos in Diário de Notícias online, o primeiro a 30 de Agosto e o segundo a 8 de Setembro de 2019).