O enterro pacífico de Jonas Savimbi

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Uma vila abandonada junto a um caminho-de-ferro que não funcionava. Cheguei lá com guerrilheiros, a pé, e ousámos entrar porque um pisteiro ofereceu-se para nos guiar os passos precisos: plantadas, havia minas antipessoal de uns, MPLA, e de outros, UNITA. "Pisa aqui", e nós, curioso jornalista ou valentes homens de guerra, obedecíamos igualmente. Com a lentidão ridícula que o medo dá. As cigarras calavam-se à nossa passagem, como para adensar a visita.

Nos quintais, limoeiros, mangueiras e abacateiros guardavam frutos de várias estações, verdes ou murchos e ambos não colhidos dos ramos. Só se entrava em Munhango por razões estranhas - como passear um jornalista pela guerra. Nenhum dos valentes que me acompanhava foi buscar um fruto. Nem eu dei dois passos para apanhar o pedal com a marca Singer forjada no ferro, igual ao da máquina de costura da minha mãe. Na estação, uma locomotiva deixava-se abraçar por arbustos que explodiam em girassóis.

Abandonámos a vila e deixámos o pisteiro e um punhado de companheiros, espreguiçando-se, porque a guerra andava longe. Mas eles suspeitavam que ela iria voltar. Era o começo do cacimbo de 1988. Até lá, Munhango já fora, por vezes sucessivas, de governamentais ou de guerrilheiros; depois disso, até às eleições de 1992, a posse da vila voltaria a alternar entre uns e outros; e quando a guerra civil retomou, até à paz acontecida com a morte de Savimbi, em 2002, a alternância continuou.

Munhango, que fora uma das melhores oficinas do CFB (Caminhos de Ferro de Benguela), passou esses anos sempre vazia, paradinha e cobiçada. À reportagem que fiz desse meu dia estranho, intitulei: "Tantos caixões por um berço." Jonas Savimbi nascera no Munhango, no Bié, centro de Angola. E foi esse facto simbólico que originou a roda da morte à volta daquele belo, silencioso e triste lugar.

Os países são assim, forjam-se com esses acasos. Na minha profissão, passei por tantos lugares de morte na terra que mais amo. Mas as imagens que mais trago comigo são de Munhango, naquele dia. Dos limões mirrados ou suculentos, para aos quais nenhuma mão se estendeu, ou do pedal da máquina de costura da minha mãe, para a qual não dei um passo. Pairando, no nosso medo, o acaso de lá ter nascido um homem que os que me acompanhavam veneravam e eu não admiro nem nunca estimei.

Savimbi não aceitou os resultados eleitorais em 1992. Angola (e Munhango) voltou à guerra civil por mais dez anos. Em 2002, Savimbi foi morto em combate e o seu corpo - relembro o simbolismo - foi enterrado, com honras militares, mas algures. Entretanto, a guerra civil acabou mesmo - tão raro em África - e os soldados e os oficiais da UNITA integraram as forças armadas. Um deles, o general Nunda, foi até ao ano passado chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas Angolanas. O corpo do símbolo é que ainda não tinha atingido o patamar da normalidade.

Neste sábado, Jonas Savimbi foi enterrado em Lopitanga, ainda no Bié. Lopitanga é a aldeia de onde vieram os seus antepassados. Ainda houve um mal-entendido entre a UNITA e o governo sobre o lugar e o momento da entrega do corpo. Mas um encontro, na quinta-feira, do presidente João Lourenço com os familiares de Savimbi e os atuais dirigentes da UNITA, logo limou as divergências. É uma das vantagens da paz sobre a guerra: pode caminhar-se sem medo de pisar o caminho. Pode colher-se a manga boa e descansar a árvore dos seus frutos mirrados.

O passado que descanse em paz. Mesmo que me tenha impedido de inclinar e acariciar um pedal enferrujado de uma máquina de costura.

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