1. Do ponto de vista teórico pode fazer-se um esforço para compreender a posição do PS expressa ontem durante a votação dos diversos projectos de lei que visam criminalizar o enriquecimento ilícito dos titulares de cargos públicos propostos por PSD/PP, por PCP e BE. Em teoria, é possível sustentar que a inversão do ónus da prova seja contrária à presunção de inocência consagrada na Constituição. .O problema está em que a sociedade portuguesa tem numa mão um documento cheio de boas intenções, redigido há 35 anos debaixo do fervor revolucionário, e na outra uma realidade concreta. Desta vez, até os comunistas e bloquistas perceberam isso. .Provavelmente - admito - virá aí, depois, uma discussão em sede do Tribunal Constitucional de resultado incerto, mas a verdade é que os dois partidos da chamada direita e os dois da extrema-esquerda corporizaram ontem no Parlamento a vontade de uma larga maioria da população nacional..Ao invés, o PS, quinze dias depois do Congresso de Braga, onde o combate à corrupção andou de boca em boca, averbou uma derrota estranha conduzida, agora no novo tempo de António José Seguro, pelos mesmos homens (Jorge Lacão e Alberto Martins) que já tinham conduzido a retórica socialista nos tempos de José Sócrates..O PS continua a ser o partido que não quer que os portugueses titulares de cargos públicos tenham de eventualmente explicar de onde lhes vieram as casas, os carros topo de gama e as contas bancárias incompatíveis com os ordenados praticados pelo Estado. Porquê?.2. Em pleno século XXI, com a facilidade dos offshores, a sofisticação na circulação do dinheiro, a falta de meios das polícias e, até, da generalidade de todas as entidades de regulação - coisa aliás bem presente nos casos do BPN e nas contas da Madeira -, esta lei faz falta. É perfeitamente compreensível que algumas pessoas possam ter de explicar de onde lhes veio a riqueza que a investigação, consumida pela falta de agentes qualificados e de equipamento moderno em nome da austeridade e de políticas criminais discutíveis, não tem tido capacidade para colocar numa acusação..É sintomático, aliás, que tenha sido um alto cargo público e político socialista, António Costa, presidente da Câmara de Lisboa, a fazer, precisamente na véspera da polémica posição do seu partido, a afirmação mais sonora nesta matéria: "Se a lei do enriquecimento injustificado já tivesse sido aprovada, a direcção do PSD/Madeira estaria há muito tempo na cadeia.".Para além da dimensão política interna - Costa é agora no PS o líder da oposição silenciosa a Seguro -, há nestas palavras do notável socialista o reconhecimento da necessidade da lei (mesmo que também ele partilhe das dúvidas quanto à constitucionalidade desta inversão do ónus da prova) e a certeza de que entre os titulares de cargos públicos há quem entenda que existe uma luta a travar em nome do interesse geral contra a corrupção e o favorecimento. .3. A sociedade portuguesa precisava deste passo, e daí que também o CDS-PP, agora no Governo, tenha feito bem em fazer evoluir a sua posição..Quem escolhe a vida pública deve saber, desde a primeira hora, que pode ser escrutinado. .Hoje em dia, quem está de consciência tranquila deve poder explicar fácil e rapidamente de onde lhe vieram os haveres e tem a obrigação de ter essa defesa a postos..Estamos perante um avanço civilizacional. .Que ele tenha sido produzido contra a posição reiterada do PS é um mau sinal para o maior partido da oposição..A entrevista de Pedro Passos Coelho à RTP ficou marcada por um erro (a admissão de possibilidade de um segundo pacote de ajuda "se" - coisa de ingenuidade comunicacional), mas sobretudo distinguiu-se pela coragem política. O primeiro-ministro foi claro quanto à forma como analisa o comportamento político de Alberto João Jardim, a quem de facto retirou a confiança partidária. Pedir mais é demagogia que nem sequer tem em conta a coesão nacional.