Encontramo-nos na Delta - The Coffee House, em plena Avenida da Liberdade, e pedimos, como não podia deixar de ser, café e capuccino. Não é por acaso ou conveniência que ali estamos. À mesa como qualquer outro cliente, a verdade é que José Cardoso Botelho é o senhorio daquela loja - na verdade, de todo o número 144. "O edifício foi construído pelo meu pai; se reparar, tem lá fora uma plaquinha a dizer MCB (Miranda Cardoso Botelho) e com o hipopótamo que é o símbolo, por inspiração de uma cabeça desse animal que o meu pai tinha, numa coleção de arte africana incrível." O prédio veio por permuta, uma troca com a Império, que queria fechar a CUF Infante Santo e deu o edifício da Avenida da Liberdade, ainda em tosco, a Cardoso Botelho..De sorriso pronto a viajar pelas recordações mais antigas, quem o visse ali sentado não imaginaria que a sua propriedade está muito longe de se esgotar naquele magnífico edifício - é o homem, ou melhor, uma das cabeças da bicéfala Vanguard Properties, que conta com os mais relevantes e distintivos projetos imobiliários do país, da Infinity Tower, em Sete Rios, à Comporta..Conta-me que a veia imobiliária foi herdada do pai, engenheiro de minas que dispensou a formação para se dedicar a este negócio, e do avô, dono de uma quinta na Azambuja e que chegou a ser autarca da região, sendo mérito dele a instalação da fábrica de tomate da Sugal, bem como outras conquistas de que José Cardoso Botelho fala com orgulho, com a fábrica da Ford. "Ainda tenho uma fotografia com o meu avô, o meu irmão e o sr. Henry Ford, ali na inauguração da fábrica da Azambuja. Ele até deu a chave de Detroit ao meu avô", conta, admitindo que o que lhe agitava a alma era "este bichinho da construção", que desenvolveu também a par da área hospitalar - era da família a concessão do Hospital da Ordem Terceira e em 1975, quando não foi renovada, o avô tinha acabado de construir um edifício onde pretendia instalar, no Alto do Duque, aquela que seria a primeira grande clínica privada portuguesa. A revolução matou o projeto, mas o que hoje é o Hospital de São Francisco Xavier esteve quase a ser embaixada da União Soviética, que o queria arrendar. "Foi em 1977 e lembro-me de o embaixador ir lá a casa, no Restelo, e levar umas latas de caviar - que eu na altura não gostava nada...", ri-se. Depois continua: "Foi Otelo que disse que não queria comunas à porta - ele estava ali no Copcon e ameaçou ocupar o edifício se o meu avô fizesse negócio com o embaixador." Não se fez esse nem nenhum, o edifício foi um dos que se foram na maré que roubou quase toda a riqueza à família..Recorda-se de o tio João ter ligado a avisar a mãe que havia uma revolução: "Vim para a janela com uma espingarda de chumbos!" Ri-se. "Claro que depois não se passou nada. Mas a perda foi enorme, para nós e para várias famílias que conhecíamos, apesar de termos tirado algumas coisas do país." Conta que o pai tinha coleções de selos, medalhas e a tal coleção de arte africana que ele e o irmão levaram de carro, em várias viagens, para a Suíça. "Um dia íamos de carro com duas estátuas de um casal de negros nus e um polícia parou-nos e perguntou o que era aquilo; eu disse que eram os meus brinquedos...", conta, a rir enquanto recorda o olhar esbugalhado que recebeu dos agentes. Por essa altura, o pai - "um grande piloto de aviões e péssimo ao volante" -, desconfiando que as coisas não iriam correr bem e tendo negócios agrícolas em Benguela, embarcou com um vizinho para Luanda, para assumir um cargo na Diamanga. Acabaria por ser preso e torturado, como outros portugueses, ficando na cadeia quatro anos sem acusação e sem a família receber dele notícias até o pai de Miguel Relvas o encontrar. "Ele até escreveu um livro a contar o terror vivido na cadeia... Lembro-me que quando finalmente ligou, ao fim de quatro anos, eu é que atendi, tinha o meu gato Pintinhas ao colo", conta, mais para ele do que para mim. Depois, o pai regressou e recomeçou quase do zero. "Era um homem de força, corajoso, muito proativo - são qualidades de que não me esqueço e que aplico até hoje.".Se a origem da veia do negócio está clara, pergunto a José como foi que conheceu o seu sócio, o francês e agora também português Claude Berda (chairman do grupo), e explica-me que foi atração imediata, num dia de outubro de 2015. Ele vinha a Portugal e um amigo comum recomendou que se conhecessem. Combinaram pequeno-almoço, passearam pela Graça, almoçaram no Time Out - "ele adora alho, pata negra, petiscos portugueses, era o sítio ideal" - e à noite estavam a fechar sociedade. No Miradouro da Graça, Claude vira um cartaz de venda num terreno e desafiou José a apertarem a mão. "Comprámos o terreno e ao jantar traçámos logo as bases do acordo, que mantemos até hoje: criar uma empresa portuguesa, com trabalhadores portugueses, que permitisse fazer a gestão de todo o espetro imobiliário e com visão de longo prazo. Por experiência dele na Suíça, quisemos ter uma equipa de vendas própria, para gerir a relação com o cliente e também reduzir custos e comissões de terceiros, apostando no mercado premium e no luxo, que ainda falta muito na oferta nacional, em que se chama luxo ao que nem premium é...".Lisboa começava a atrair clientes internacionais de um nível diferente e o investimento era seguro, com foco assumido no residencial e uma estrutura potenciadora de grande agilidade no processo de decisão. "Foi tudo cumprido na íntegra, até hoje, e até os valores de startup mantemos, apesar de termos já 63 pessoas a trabalhar no investimento imobiliário - e com as participadas, chegaremos ao fim do ano com mais de mil. Esse é um desafio que agora temos: o de nos tornarmos mais processuais, sem perder as características de startup"..Incrivelmente, oito anos depois de apertarem as mãos, o investimento da Senhora do Monte, na Graça - bem como o segundo, um palacete no Quelhas - ainda está por cumprir, por uma sucessão de infortúnios inesperados ou, mais simplesmente, pelas costumeiras entropias do licenciamento e burocracia autárquica. "É verdadeiramente inacreditável. O terreno foi-nos vendido pelo vencedor de uma hasta pública e com tudo definido num projeto simples, com as volumetrias todas, tudo. A CML tinha a via verde para aprovar processos em 45 dias, mas nada aconteceu. Agora, parece que estamos na fase final de resolução dos problemas que foram sendo criados", conta José, que foi acumulando debaixo da Vanguard Properties outros grandes projetos, como o 203 Castilho. Aqueles dois, porém, foram sendo sucessivamente travados por "questões bastante absurdas". Nos Terraços do Monte, por exemplo, levantaram dúvidas sobre a interferência nas vistas do miradouro, e apesar de o 3D mostrar todo o projeto em detalhe obrigaram a Vanguard a criar uma estrutura tubular para implantar no terreno uma simulação da construção, o que implicou infraestrutura, construção dos monos, implantação no terreno... e depois retirar tudo quando se percebeu que estava tal e qual como se apresentara..Nascido e criado no Restelo, quando a zona pouco mais era do que um monte, José é o mais novo de quatro irmãos e recorda como costumava brincar na rua, fazer corridas de carros de esferas rua abaixo e dar o "passeio das 21.00" - andavam de bicicleta todas as noites - com os vizinhos Pereira Coutinho e Eduardo Oliveira e Sousa. Kalu era outro companheiro de bairro, por isso foi testemunha do nascimento dos Xutos&Pontapés. Andou sempre na escola pública, como a irmã e irmãos - primeiro na rua do Careca, depois na Paula Vicente e no Dom João de Castro - e para consolidou os estudos superiores na escola de comércio e empreendedores de Paris e com um MBA nos Estados Unidos. E apesar de ser o mais novo, desde miúdo que achava graça a construir.."É uma atividade em que se vê logo o que se faz, que deixa legado, permanece por muito tempo. Eu adoro o edifício da Castilho porque acho que vai envelhecer bem - essa é uma das minhas maiores preocupações e que passo aos arquitetos: quero que os edifícios sejam como um Rolex ou um Jaguar, que daqui a muitos anos continuem bonitos, bem integrados, elegantes. Os prédios dos anos 1950 são assim, um edifício pombalino continua lindo; ao passo que um edifício que se faz segundo a moda é asneira, porque não se pode renovar um edifício como se compra um vestido novo - e vê-se muita barbaridade dos anos 70 e 80 e até 90 por aí...".Consciente de querer deixar um legado, José Cardoso Botelho não se limita a construir edifícios bonitos e intemporais. Eles são de facto filhos de um conceito único. Têm, por exemplo, arte integrada, peças de grandes artistas portugueses, como Joana Vasconcelos ou José Pedro Croft que são integrados no hall dos edifícios, em casas "pensadas para quem lá vive e não para ganhar prémios", em que as cozinhas, as casas de banho, etc. são elementos centrais. "Temos tido sucesso e isso ajuda a contribuir para um conjunto de atividades de mecenato a que também nos dedicamos, na arte, no desporto ou na educação", explica, exemplificando com a Escola 41, "um projeto educativo revolucionário" de que a Vanguard é mecenas fundador, tendo contribuído com 1,250 milhões. É parte dos valores que, ao lado de Tatiana, quer passar aos filhos, Misha, de 12 anos, Lisa, 10, e Nikolai, de 3 meses - que, à exceção do bebé, claro, já integram a Vanguard Stars, academia de ténis sub11 mais reconhecida na Europa, que conta com mais de mil jogadores de todo o mundo e de onde têm saído os campeões mais jovens. De resto, todo o seu tempo é passado com a família - "quero estar com eles, acompanhar os meus filhos", sublinha..Aos 59 anos, o que lhe falta fazer? Certamente não será levar o seu negócio além fronteiras. Prefere consolidar aqui e criar valor em Portugal, desenvolver um mercado que tem muito por desbravar, investindo em marcas. "Quando comprámos a Comporta, podíamos ter vendido tudo em lotes em 15 dias mas quisemos dar-lhe uma identidade própria, preocupava-me como a região se iria desenvolver, desde logo no método de construção, que queria integrado na paisagem, sustentável, a evoluir à velocidade certa e bom para as populações locais, acabando com a sazonalidade que havia ali. O meu último grande desafio será desenvolver esse projeto.".Explica que criou um modelo único para aquele projeto e que acredita que será a inovação da sua vida, o legado, com grande componente tecnológica. "Fiz algo que eu queria mas que não existia", explica. "As casas têm todas uma componente estrutural e depois uma de acabamentos e decidimos criar soluções de forma que não vendamos lotes, mas antes um produto construído - porque o mau gosto é difícil de controlar", ri-se. E foi mais longe, criando uma plataforma que acredita que poderá viver além da Comporta e mudar o paradigma do imobiliário: "A pessoa que nos visita vai poder, sabendo o que quer e em que tipologia quer investir quanto, desenhar a casa dos seus sonhos ali mesmo, em três horas, com combinações infinitas. Não é uma solução modular, é mesmo à medida, mas no próprio dia conseguimos, com esta plataforma e uma rede industrial e de empresas, fazer o desenho da casa, a planta 2D, as imagens 3D, o contrato reserva, a promessa de compra e venda, dar uma data de entrega e o preço." Tem também decoradores que podem encontrar esse tipo de soluções ao gosto de cada um - "aí não podemos dar um preço fechado, mas damos indicação por m2 e o tempo indicativo. Tudo isto é novo e implica ter uma indústria por trás, mas cria uma nova oportunidade, porque permite que alguém que nem está a comprar connosco possa fazer uma parceria em planta, põe o terreno e nós fazemos o resto." Em resumo, está a acrescentar ao imobiliário, arquitetura, engenharia, entrega, pós-venda, etc. O que nunca ninguém fez. "E se correr bem na Comporta, será o meu projeto de vida."